(Português) A politização sem dogmas do Teatro do Oprimido

ORIGINAL LANGUAGES, 15 Sep 2014

Ovídio Poli Junior – Outras Palavras

Workshop de Boal com técnicas do Teatro do Oprimido em Paris (1975), durante exílio do dramaturgo

Workshop de Boal com técnicas do Teatro do Oprimido em Paris (1975), durante exílio do dramaturgo

Em autobiografia, Augusto Boal revê circunstâncias pessoais e históricas que o levaram a romper com forma arcaica da velha “arte engajada”

“Difamam a sua pátria os que calam os crimes do seu governo, jamais os que falam”. — Augusto Boal

Entre os nomes de nossa dramaturgia, Augusto Boal (1931-2009) figura não apenas como autor e diretor, mas sobretudo como teórico da arte teatral. Aos 70 anos, declarou em entrevista considerar-se um exilado em seu próprio país, em virtude de seu trabalho ser mais conhecido no exterior do que entre nós – um homem cujo trabalho e trajetória muitos brasileiros só vieram a conhecer recentemente, depositário que somos do legado de estupidez deixado por aqueles que, de maneira diferenciada, censuraram, prenderam, torturaram e expulsaram do território e da memória do país pessoas como José Celso Martinez Corrêa, Mário Lago, Flávio Rangel, Ferreira Gullar, Plínio Marcos e o próprio criador do Teatro do Oprimido (citamos apenas alguns nomes, dos muitos inscritos na esfera teatral).

No decorrer da leitura de Hamlet e o filho do padeiro, sua autobiografia, nosso interesse pontual pela experiência carcerária do dramaturgo foi-se ampliando pela rede de recordações que o autor tece desde a infância passada no bairro da Penha, no Rio de Janeiro, até os anos mais recentes em várias partes do mundo. O autor recorda fatos importantes da história teatral brasileira e episódios de sua vida, relatados de forma exuberante e com intensa alegria em mais de trezentas páginas, das quais emerge uma profunda paixão pelo teatro.

A obra é escrita com humor cáustico e profunda ironia, entremeando memória e imaginação em uma abordagem nem sempre linear que confere à narrativa ritmos distintos. O propósito central do livro, no entanto, não se perde: o autor quer nos contar a interação existente entre sua trajetória pessoal, as circunstâncias históricas em que viveu e sua teoria teatral.

Augusto Boal nasceu em 16 de março de 1931. Os familiares, camponeses da região trasmontana de Portugal, emigraram para o Brasil no começo do século passado, estabelecendo-se no pequeno comércio (uma padaria e um armazém de secos e molhados). O pai viera exilado aos vinte anos, em 1914, por se recusar a participar da guerra.

Dos anos de infância sobressaem os “ensaios” com um carismático cabrito – que, nas palavras sempre irônicas do autor, teria dado ensejo a seu primeiro trabalho de “direção teatral”:

“Chibuco era o máximo! Corria, dava cambalhotas – raríssimo em caprinos – e pulava corda – único. Sem destreza, é verdade, mas pulava. (…) Chibuco foi meu primeiro ator, fez de mim verdadeiro diretor teatral. Eu era autoritário como são os diretores imaturos. Com ele, comecei minha carreira teatral: eu dirigia espetáculos caprinos sem jamais consultar meu elenco. Só mais tarde aprendi as alegrias do trabalho em equipe”.[1]

Os anos seguintes transcorreram entre as reverberações remotas da guerra, as dramatizações das radionovelas com os irmãos, as duas padarias do pai, a escola e a rua. Esse período é narrado com vivacidade e espírito crítico, com a pena da galhofa e sem a tinta da melancolia:

“A professora de aritmética trouxe o irmão mais velho à Escola. Fardado: Subtenente do exército. Dona Edite contou o esforço dos pais em realizar os sonhos militares do filho, cantou seus sucessos no quartel de cavalaria – já que não tinha tido a felicidade de ser sorteado para defender a Pátria na Itália, cuidava da bosta dos cavalos”.

É certo que toda autobiografia confere ao vivido uma coerência e uma continuidade que em última instância são construídas pelo olhar seletivo[2]  da memória e da imaginação: porém, diferentemente das biografias, esse gênero narrativo nos permite apreender como o biografado teria vivido subjetivamente a sua vida (ou como gostaria de tê-lo feito).

Em Hamlet e o filho do padeiro, os anos de infância e adolescência aparecem como cruciais para a definição de um projeto (no sentido sartreano) que, alimentando-se na história, iria desembocar na concepção do Teatro do Oprimido: da experiência infantil nascera o desejo de dedicar-se ao teatro; esse desejo, porém, ficou descansando como massa sovada devido ao trabalho diuturno na padaria, interrompido aos dezoito anos com o ingresso na Escola Nacional de Química. O contato com os oprimidos também se deu nesse período – operários do curtume, “formigas apressadas”, ainda escuro pediam café com leite, pão com manteiga e aguardente antes de levar os braços às máquinas. Daí nasceram algumas de suas peças, que deixava repousando e, anos mais tarde, reescrevia: “Escrevendo, faço meu pão, como meu pai”.

No curso de Química, do qual apenas se desincumbia, é eleito para o Departamento Cultural do Diretório Acadêmico. Organiza um ciclo de conferências e convida Nelson Rodrigues. A conferência revelou-se um fiasco: sete pessoas foram ouvir o dramaturgo. Após o episódio, no entanto, Nelson Rodrigues tornar-se-ia seu conselheiro, recebendo várias de suas peças e anotando-as com comentários. Por seu intermédio, Augusto Boal conhece Sábato Magaldi e outras personalidades do meio teatral. Em 1953, após a conclusão do curso de Química, embarca para os Estados Unidos e passa a frequentar o curso de dramaturgia ministrado por John Gassner, experiência crucial em sua formação.

Recém-chegado ao Brasil após dois anos nos EUA, onde trabalhou como garçom, Augusto Boal aceita o convite de Sábato Magaldi para dirigir o Teatro de Arena em São Paulo. Ali conheceria Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, com quem trabalharia por mais de dez anos imprimindo ao grupo uma forte conotação nacionalista, desenvolvendo uma postura preocupada com a temática social e política e, sobretudo, com a popularização da linguagem teatral. As montagens e os seminários de dramaturgia ali nascidos iriam se associar, no período imediatamente anterior ao golpe de 1964, com as experiências e práticas teatrais desenvolvidas pelo Centro Popular de Cultura no Rio (CPC-UNE) e pelo Movimento de Cultura Popular no Nordeste (que, anos depois, Boal viria a caracterizar como dogmáticas).

Grande parte de sua autobiografia é marcada por reflexões e relatos sobre esse período, no qual as tentativas de aprimoramento estético e formal conviveram com uma progressiva escassez material e financeira. A reflexão de Boal aponta um certo pieguismo na prática conscientizadora adotada na época e examina os dilemas que levariam a formulações estéticas posteriores. A decisão de excursionar pelo interior do país é apresentada em termos estritamente políticos, que tiveram desdobramentos no âmbito formal e estético:

“No Arena, nós nos limitávamos a mostrar a vida pobre, como éramos capazes de entendê-la. Em cena, nos vestíamos de operários e camponeses: os figurinos eram autênticos, mas não o corpo que os habitava. (…) Nosso público era classe média. Operários e camponeses eram nossos personagens (avanço!), mas não espectadores. Fazíamos teatro de uma perspectiva que acreditávamos popular – mas não representávamos para o povo!”.

Em Pernambuco, durante o governo de Miguel Arraes, o dramaturgo vivenciou uma situação que o faria questionar a autenticidade daquilo que chama de forma mensageira ou evangélica de teatro político.

O episódio ocorreu logo após uma apresentação teatral, em que os atores exortavam uma plateia de camponeses a retomarem suas terras dos latifundiários:

“Foi quando o camponês Virgílio, chorando entusiasmado com nossa mensagem, me pediu que, com o elenco e os fuzis, fôssemos com seus companheiros lutar contra os jagunços de um coronel, invasor de terras. Quando respondemos que os fuzis eram falsos, cenográficos, não davam tiros, e só nós, artistas, éramos verdadeiros, Virgílio não hesitou e disse que, se éramos de fato verdadeiros não nos preocupássemos: eles tinham fuzis para todos. Fôssemos apenas lutar ao seu lado. Quando lhe dissemos que éramos verdadeiros artistas e não verdadeiros camponeses, Virgílio ponderou que, quando nós, verdadeiros artistas, falávamos em dar nosso sangue, na verdade estávamos falando do sangue deles, camponeses, e não do nosso, artistas, já que voltaríamos confortáveis para nossas casas”.[3]

O golpe de 1964 interrompeu esses questionamentos e inauguraria uma conjuntura distinta, que o levaria à prisão e ao exílio:

“Triste felicidade. O Arena, no Nordeste, havia encontrado o nosso povo; o CPC, no Rio, encontrara o seu. Embora dialogando com o povo, continuávamos donos do palco, o povo na plateia: intransitividade. (…) Continuava a divisão de classes, perdão, palco e plateia: um falava, outro escutava. (…) Agora, com a repressão, nem palco nem plateia: o povo tinha sido expulso dos teatros, sindicatos, associações, paróquias – povo proibido. Teatro outra vez assunto de classe média e intelectuais”.

O tom da narrativa é marcado pelo extremo sarcasmo ao abordar episódios com a censura, como a exaustiva negociação travada com um censor durante o ensaio geral de Chapetuba F. C., de Oduvaldo Vianna Filho, que estreava como dramaturgo e discutiu durante horas uma permuta entre os palavrões que o funcionário do regime pretendia excluir da peça.[4]

Durante o exílio, que transcorreu em países latino-americanos e europeus, Augusto Boal desenvolveu e sistematizou suas concepções teatrais, hoje estudadas e praticadas em inúmeros centros espalhados pelo mundo. Entremeando episódios, em Hamlet e o filho do padeiro Boal nos conta a gênese do Teatro do Oprimido – que, em síntese, é constituído por um conjunto de técnicas e concepções que procuram fazer com que o espectador se transforme em protagonista e colabore com o espetáculo. O livro demarca com precisão essa transformação, mostrando de que maneira se entrecruzaram reflexão estética e circunstâncias históricas.[5]

Acuado pela ditadura, ainda assim esse teatro encontrou meios de resistência e de expressão: estrangulado economicamente, sustentado às vezes por “três dúzias de bananas”, fez da escassez material um instrumento para reformular o espaço cênico e a relação entre palco e plateia; perseguido e banido, nasceu na nudez e na simplicidade, no isolamento da prisão e na interação com plateias populares, no interior do Brasil e nos países do exílio.

Numa última iniciativa apresentou à Bienal, em 1973, o projeto de uma sala em homenagem a Tarsila e Maria Martins (1900-73), falecidas naquele ano. O projeto não foi sequer iniciado, mas indica como o artista representava uma ponte entre estes dois momentos fundamentais: o início da renovação nos anos 1920 e a vanguarda dos anos 1960. Ultrapassara dessa maneira os anos 1930, nos quais se destacara como animador cultural, em momento marcado pelo radicalismo social e político; e também os anos 1950, com a hegemonia das correntes abstratas, mantendo-se firmemente vinculado às correntes primitivistas da arte moderna, tendo Freud e Nietszche como referências.

NOTAS:

[1] Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. As citações seguintes foram extraídas desta mesma obra.

[2] A seletividade da memória implica não apenas na simples percepção das coisas, sendo antes e sobretudo uma forma de projeção sobre o mundo.

[3] Boal conclui sua reflexão recorrendo a Che Guevara: “Esse episódio me fez entender a falsidade da forma mensageira de teatro político, me fez entender que não temos o direito de incitar seja quem for a fazer aquilo que não estamos preparados para fazer. (…) ‘Ser solidário é correr o mesmo risco’, dizia o Che: nós não corríamos risco nenhum cantando nossos hinos revolucionários”.

[4] O autor relata ainda outros episódios burlescos, como a apreensão dos livros O vermelho e o negro, de Stendhal, e História do cubismo, que supostamente fariam alusão a ideais socialistas e anarquistas (devido às cores) e à revolução cubana (pelo sufixo).

[5] Em Arena conta Zumbi vemos nascer o Sistema Curinga (rodízio de personagens inspirado na figura do kurogo do teatro kabuki japonês e na famosa carta do baralho). Em longas páginas, vinculados aos acontecimentos que lhes deram origem, são descritos os questionamentos feitos à época das experiências no Nordeste, que iriam desembocar no Seminário de Dramaturgia em Santo André (quando pela primeira vez Boal pôde ver operários no palco e na platéia). Do mesmo modo, nos anos pós AI-5, vemos nascer a modalidade do Teatro-Jornal (uma espécie de teatro instantâneo, baseado em técnicas que transformam notícias de jornal em cenas teatrais, concebido pelo Núcleo 2 do Arena para fugir à perseguição policial). A partir de uma inesperada intervenção de uma espectadora indígena peruana, identificamos o embrião do Teatro-Fórum. Em Buenos Aires, simulando um grupo que se recusa a pagar a conta em um restaurante com base em uma lei existente no país, temos o nascimento do Teatro-Invisível. Nos anos mais recentes, durante seu mandato como vereador no Rio de Janeiro, vemos irromper o Teatro Legislativo, que associa as técnicas gerais do Teatro do Oprimido a práticas populares propositivas de caráter legislativo.

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Ovidio Poli Junior: Escritor, editor e doutor em literatura brasileira pela USP.

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