(Português) Ecolinguagem

ORIGINAL LANGUAGES, 5 Jan 2015

Francisco Gomes de Matos, Elza Kioko N. N. do Couto, Adilson Marques & Hildo Honório do Couto, A Arvinha – TRANSCEND Media Service

  1. Introdução

A primeira ideia que vem à mente quando ouvimos a palavra ‘ecolinguagem’ é a de que ela seria a “linguagem ecologicamente correta”. Essa é a opinião do leigo. Porém, ela é apenas parcialmente correta e pode levar a interpretações equivocadas, como sói acontecer. Por isso, deixemos a conceituação para a seção seguinte e passemos ao surgimento da própria palavra.

Durante a realização do I Encontro Brasileiro de Imaginário e Ecolinguística (I EBIME), na UFG, de 5 a 6 de dezembro de 2013, ela apareceu pelo menos no título de Marques (2013). Em Couto & Silva (2013) ela foi discutida em algumas seções do ensaio, como veremos mais abaixo. Na internet, não encontramos nenhuma ocorrência da palavra ‘ecolinguagem’ em português, sem hífen. Com hífen, porém, ela apareceu pelo menos no subcapítulo de um artigo traduzido do inglês intitulado “Eco-linguagem: fazendo a natureza significar ‘meio-ambiente'”. Em inglês, espanhol, francês e alemão ela ocorreu, com e sem hífen, em geral fora dos estudos linguísticos, com raríssimas exceções. Em ensaios científicos, o termo já surgiu pelo menos duas vezes, como em Ferreira (2002) e Martí Marco (2006), às quais voltaremos logo abaixo. É importante ressaltar desde já que o sentido atribuído à palavra por elas não é necessariamente o mesmo em que a usamos aqui. De qualquer forma, o termo se insere no contexto da visão ecológica de mundo, que tem dado origem a muitas eco-palavras, que veem aumentando a cada dia que passa. Pelo menos em português e em galego já ocorreu também a variante ‘ecolíngua’.

  1. Conceituando Ecolinguagem

Para entender o que é ecolinguagem, é necessário associá-la à visão ecológica de mundo. Com isso, ela tem muito a ver com a ecolinguística, embora não se possa dizer que a última a tenha como objeto de estudo. Na verdade, ecolinguística é o estudo das relações entre língua e seu meio ambiente (natural, mental, social), ou das interações verbais que se dão no meio ambiente natural, no mental e no social. Vale dizer, a tentação de dizer que a o objeto de estudo da ecolinguística é a ecolinguagem é muito grande, no entanto, a ecolinguística é mais ampla, uma vez que toda e qualquer manifestação linguística está no seu âmbito de interesse. A fim de encaminhar a discussão de modo mais direcionado, comecemos pela opinião das duas autoras já mencionadas, cujos ensaios estão em alemão.

A primeira delas é a ucraniana Olga Malachowa. Malachowa (1996) é inteiramente dedicado à ecolinguagem, em alemão Ökosprache. Para ela, um dos objetivos da ecolinguagem é “aperfeiçoamento das relações dos humanos com o meio ambiente”, acrescentando que “como resultado desse processo surgirá um novo nóvel lexical” (p. 205). Trata-se do ecoléxico. Ela não chega a definir ‘ecolinguagem’. O significado fica implícito ao longo de todo o texto. Em alemão o ecoléxico apresenta cinco tipos de expressões, ou seja, 1) inovações lexicais, 2) formação de palavras, 3) ressignificação de palavras, 4) fraseologismos, 5) estrangeirismos.

Seis anos depois, a portuguesa Adelaide Ferreira também usou a palavra. Em Ferreira (2002), ela conceitua o equivalente alemão de ecolinguagem (Ökosprache) como sendo menos concreto do que “linguagem de casa” (Haussprache). Para ela, ecolinguagem “tem a ver com naureza/meio ambiente de modo mais concreto”. Entre as palavras que inclui na ecolinguagem encontram-se: “meio ambiente”, “natureza (livre)”, “ecologia”, “reservas naturais”, “biótopo”, “oceanos”, “Amazônia”, “energia atômica”, “animais selvagens”, “plantas”, “catástrofe climática” e “tratamento do ecossistema”.

A terceira é a espanhola Martí Marco (2006) que, na verdade, retoma ideias de Malachowa e Ferreira. Para ela, ecolinguagem (Ökosprache) é uma ‘linguagem de especialidade’, no caso, da ecologia e tudo que tem a ver com ela. Acrescenta que o uso quotidiano “ameaça tornar ‘ecologia’ uma etiqueta para tudo que é bom, como o que está longe das cidades, ou para tudo que não contenha produtos químicos sintéticos”. Menciona como parte do ecoléxico expressões como natural, ambiental etc. Algumas expressões indicam atributos positivos (verde, amigo do meio ambiente); outras, atribbutos negativos (poluição, ameaçado, esgotato).

Como já notado acima, durante o I EBIME o termo ecolinguagem ocorreu também em Couto & Silva (este volume). Diferentemente de Marques (este volume) os autores chegam a dar algumas sugestões de conceituação de ecolinguagem. Já no resumo da comunicação oral, eles dizem que “o objetivo deste artigo é discorrer sobre a ética ecológica (ecoética) e mostrar como ela poderia ser desenvolvida no contexto da Análise do Discurso Ecológica (doravante ADE), que parte da ecolinguagem e enfatiza a defesa da vida, inclusive sugerindo intervenção a fim de preservá-la”. Para eles, “a ecolinguagem é expressão vista numa perspectiva holística, ou seja, a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, sempre articuladas entre si dentro da totalidade e construindo essa totalidade”, reportando-se a Leonardo Boff. Continuam asseverando que o uso do prefixo eco- faz parte da ecolinguagem. Concluem com a observação de que se “percebe que é necessária uma luta pela vida de todos os seres de todas as espécies sem violência e criticando o antropocentrismo em sua máxima e, consequentemente, contra tudo que pode trazer sofrimento” e que para isso “é necessário partir da ecolinguagem e aliar a ecoética à ADE”.

Diante do que foi discutido até aqui, nota-se que ecolinguagem tem a ver com ecologia, no sentido mais amplo da palavra. Mas, em vez de ser apenas uma linguagem ecologicamente correta, é, antes, a linguagem que se mostra em sintonia com a visão ecológica de mundo. Isso implica muitas coisas. Por exemplo, praticar ecolinguagem é:

  1. respeitar a diversidade, em todos os sentidos;
  2. encarar tudo holisticamente, não parcialmente (com parcialidade);
  3. aceitar a ideia de que o mundo é impermanente, como dizem os taoístas; ele é um processo, nada é reigidamente estático;
  4. procurar ser cooperativo, solidário, magninânimo e tolerante, como manda o taoísmo;
  5. mostrar tudo isso na escolha das palavras e no modo de usá-las;
  6. usar uma linguagem ecologicamente correta.

Como nos ensina a ecologia profunda, criada pelo filósofo norueguês Arne Naess (1912–2009), tudo isso deve ser observado não só no que tange aos humanos mas também no que diz respeito aos demais seres vivos, e até os aspectos abióticos do mundo.

  1. Ideologia ecológica

Se a ecolinguagem tem tudo a ver com ecolinguística, mesmo que o objeto da segunda não se restrinja a ela, conclui-se que ela tem também a ver com o objeto de estudo da análise do discurso ecológica, a ADE (Couto, este volume). Ela surgiu com o objetivo de substituir a ênfase dada pela análise do discurso tradicional à ideologia (política, partidária, religiosa etc.) e às consquentes relações de poder. A ideologia no caso tem sido a marxista, que tem pelo menos três implicações inaceitáveis para a visão ecológica de mundo. A primeira é o antropocentrismo (sob o manto de humanismo), sendo que a ecologia defende o biocentrismo e o ecocentrismo. A segunda é a ênfase no conflito, sendo que a ADE e tudo que está por trás dela partem da harmonia, como se faz no taoísmo e na ecologia profunda. A terceira é a “ditadura do proletariado”, locução nominal cujo núcleo é “ditatura”, não “proletariado”. Sabemos muito bem a que distorções essa ideologia levou quando posta em prática na União Soviética, na Alemanha Oriental, na Coreia do Norte e em Cuba, para mencionar apenas quatro casos.

Como a ecolinguística, bem como da visão ecológica de mundo em que se insere, a ADE parte da ideologia ecológica, ou ideologia da vida. Para ela, o mais importante no caso de uma mulher que sofre nas mãos de um marido violento que chega bêbado em casa e a espanca todos os dias não é encarar o fato da perspectiva do feminismo e do machismo. Feminismo e machismo são ideologias, e ideologias são partidárias, dividem. A ADE defende a mulher não por ser mulher, com o que a estaria pondo em oposição ao homem, mas por ser um ser vivo que sofre. Assim, ela é posta em condição de igualdade com o homem, e seu sofrimento deve ser combatido pelo simples fato de se tratar de sofrimento de um ser vivo. Esse é o ponto central da ADE, a defesa intransigente da vida e uma luta constante contra tudo que possa trazer sofrimento a um ser vivo. Dessa perspectiva, quem a pratica está naturalmente usando ecolinguagem.

  1. Alguns dos primeiros estudiosos de temas relativos à ecolinguagem

Alguns autores já trataram de temas que se incluiriam no bojo da ecolinguagem. O primeiro que gostaríamos de mencionar é Bohm (2007). Embora seja um físico, ele se preocupou muito com a questão da linguagem que usamos para falar do mundo, que o reificaria, que veria nele coisas, representadas na linguagem por substantivos. Para ele, “numa teoria relativística, é necessário abandonar por completo a noção de que o mundo é constituído de objetos ou ‘blocos de ocnstrução’ fundamentais”, que seriam designados por substantivos (p. 30). Assim, “uma característica muito importante desse tipo é a estrutura sujeito-verbo-objeto das sentenças” que “tende a dividir as coisas em entidades separadas” (p. 53), no caso, a coisa “sujeito” e coisa “objeto”, ligadas pela ação indicada pelo verbo. Segundo a nova visão de mundo, introduziada pela teoria da relatividade, “em vez de dizer: ‘Um observador olha para um objeto’, podemos mais adequadamente dizer: ‘A observação está ocorrendo, num movimento indiviso envolvendo essas abstrações comumente chamadas de ‘ser humano’, e de ‘objeto para o qual ele está olhando'” (p. 54).

Uma expressão como está chovendo está mais em sintonia com a nova visão de mundo do que a chuva está caindo. Bohm acrescenta que “a bem da conveniência, daremos a esse modo [de se expressar] um nome: reomodo (rheo vem de um verbo grego que significa ‘fluir’). Ao menos em primeira instância, o reomodo será uma experiência no uso da linguagem, experiência essa voltada, principalmente, para a tentativa de descobrir se é possível criar uma nova estrutura que não seja tão inclinada à fragmentação como é a atual. Evidentemente, nossa indagação terá de começar enfatizando o papel da linguagem no modelamento de nossas visões globais de mundo, bem como em expressá-las mais preciosamente na forma de ideias filosóficas gerais” (p. 55). Enfim, o autor sugere que vejamos o mundo como uma imensa rede de interações, não como um conjunto de coisas que se relacionam entre si. Embora ele aparentemente não fosse um ecologista, sua proposta é inteiramente ecológica. Portanto, o que ele defendeu pode integrar a ecolinguagem.

Um segundo autor se dedicou ao assunto é o conhecido linguista Michael Halliday. Num ensaio que se tornou divisor de águas na ecolinguística (Halliday 2001), ele defende uma tese muito parecida com a de Bohm, mostrando que desde os escritos de Newton, a tendência na língua inglesa é de ver o mundo mediante nomes abstratos como termos técnicos tirados do grego via latim clássico e medieval (incidence, proportion), nomes metafóricos como nominalizações de processos e propriedades (the diverging and separation of the heterogeneous rays), grupos nominais expandidos como palavras funcionando como epítetos e classificadores (several contiguous refracting Mediums), grupos nominais expandidos com frases e sentenças funcionando como qualificadores (the Whiteness of emerging light, the refracting force of the body), verbos metafóricos como verbalização de relações lógicas (arises from, is occasioned by) e assim por diante. Fatos semelhantes são citados para o italiano, na linguagem de Galileo (Halliday 2001: 187-188). O autor acrescenta que o que esses autores fizeram foi simplesmente reforçar registros da língua que já estavam disponíveis.

De acordo com Halliday, os discursos tecnocrático, burocrático e científico são herméticos, com o que os assuntos se tornam obscuros. Uma vez que “são obscuros, não devemos ter esperança de entendê-los, de modo que a solução deve ficar com os especialistas” (p. 190). Em parte isso se deveria, segundo ele, à gramática nominalizadora e metafórica do século XX. De modo que a chamada “sociedade da informação” deveria ser chamada de “sociedade da desinformação”. A proposta de Halliday afirma que “a nominalização foi funcional para a evolução da ciência experimental, possibilitando o desenvolvimento de taxonomias técnicas e desvelando as relações existentes entre os processos, mas não é adequada para representar a visão de mundo mais relativística que está emergindo da ciência moderna porque representa um mundo de coisas, não de processos. Nominalizações como perda de habitat, extinção de espécies e destruição da floresta pluvial permitem a supressão do agente, o que ocultaria a culpa de quem causa tudo isso. Enfim, essas ideias de Halliday salientam o que não é ecolinguagem, mas, antes, o seu contrário.

Mais próximos de nós temos os trabalhos do primeiro autor do presente ensaio, F. Gomes de Matos. Como se pode ver no boletim do Instituto de Idiomas Yázigi (Criativity n. 25, 1977) de que foi diretor, ele sugeria a associação enre linguagem e seu ensino a ecologia já na década de setente do século passado, reportando-se a Catherine Young Silva. Um dos objetivos era “estabelecer um equilíbrio ecológico de modo a melhorar a qualidade de vida na terra”. A partir daí, o autor começou a apresentar sua proposta de “português positivo”, dentro da filosofia de que “comunicar bem em português é comunicar-se para o bem”, de acordo com uma “filosofia da positividade” (Matos 1996: 13). Partindo da visão de mundo cristã, sugeria que se tratasse o outro como o próximo, não o estranho. Entre os termos que comporiam esse ‘português positivo’ e que, portanto, são parte da ecolinguagem, temos: alegria, aliança, amizade, amor, caridade, concórdia, consciência, esperança, honra, humildade, justiça, liberdade, obediência, perseverança, por um lado, mas também aceitação, bondade, compreensão, confiança, cooperação, dignidade, fidelidade, generosidade, honestidade, sabedoria, santidade, sensatez, ternura, união, verdade e virtude, por outro lado.

Essa pesquisa continua até nossos dias, como se pode ver em Matos (1996, 2006). No momento, ele tem enfatizado que uma alternativa comunicacional para palavras maximizadoras, enfatizadoras poderia ser inspirar-se na relação entre linguagem e meio ambiente e aplicar os princípios da ecolinguística. Assim, as algumas intensificações passariam a ser expressas por oceânico(a), ensolaradamente etc. No fecho de seus emails informais em português, ele tem dito Um abraço ensolarado ou ativar a variante ensolaradamente, e mandar um abraço. Quando exerce o direito linguístico de bilíngue (português e inglês), encerra uma mensagem eletrônica assim: sunny regards. Ao agradecer a um(a) amigo(a), frequentemente diz: an ocean of thanks (oceanicamente agradecido). Seria como mergulhar nas águas ecolinguísticas disponíveis para os usuários de português e criar modos de dizer inspirados por fenômenos naturais. Ao exercer a criatividade linguística, que tal integrar a dimensão ecolinguística e manifestar ideias enluaradamente, ao invés de simplesmente dizer iluminadamente? Claro que essas maneiras de se expressar constituem metáforas, mas comunicar é metaforizar, por isso, empenhemo-nos em dar mais vivacidade aos nossos papéis de metaforizadores. Um desafio ecolinguístico consistiria em traduzir uma expressão do informal usual para o informal ecolinguisticamente inusitado. Exemplo: sua sugestão está muito além das disponibilidades financeiras por sua sugestão está financeiramente montanhosa.

Em outras situações, poderíamos ter: uma noite de domingo estelarmente feliz para você, agradeço oceanicamente pelo interesse em meu apelo em prol de uma comunicação ecolinguisticamente construtiva, positiva, dignificante. No ensino de português quando se aborda a metaforização bem se poderia ensolarar a qualidade das mensagens e plantar ideias que frutifiquem para o bem dos usuários de línguas. Às vezes Matos termina as mensagens com abraço capibaribeano, lembrando o rio de sua infância, em Recife. Ao cumprimentar um tecnólogo educacional, em vez de dizer votos de muito sucesso tecnológico, que tal dizer deliciosos frutos em suas árvores tecnológicas?”. Enfim, Bohm, Halliday e Matos sugeriam, e usavam, ecolinguagem mesmo avant la lettre.

Por fim, temos o falecido ecolinguista brasileiro Manoel Soares Sarmento que sugeriu diversos tipos de expressão para uma futura ecolinguagem. Em Sarmento (2002, 2012), ele propõe uma ecolexicologia e uma ecolexicografia. De um modo geral, o autor propunha “palavras ecológicas” e “expressões ecológicas”, no contexto de sua ecolexicografia. Em Sarmento (2012), ele diz que “nossa ciência tem de se ver às voltas seriamente, na realização de suas discussões e tarefas, com as palavras que usamos, a respeito dos efeitos que elas causam, quais as suas potencialidades para criar, enfraquecer, fortalecer, manter e destruir”. “Alguns alvos de anvestigação da ecolinguística” seriam: “tratar a língua face aos sistemas biológicos diversos e similares”; realizar a crítica da língua, tanto em termos do par língua-meio ambiente, quanto de uma crítica ao sistema interno da língua. Assim, o trabalho envolveria os estratos comumente discutidos da língua humana: o léxico, a morfologia a sintaxe, a semântica etc.”.

Por fim, cabe mencionar a conbrituição do quarto autor que tentou aplicar os princípios do taoísmo à linguagem (Couto 2012). Tudo que está dito no livro está no escopo da ecolinguagem, uma vez que a linguagem taoísta é ecolinguagem, como se verá na seção seguinte.

  1. O tao da linguagem

Aqui vamos apenas lembrar algumas passagens de Couto (2012). No capítulo “Conclusão” do livro, vemos que “o tao da linguagem consiste em:

  • Valorizar mais o conteúdo do que a forma
  • Falar apenas o necessário
  • Ouvir mais do que falar
  • Não querer dominar a palavra
  • Respeitar o direito do interlocutor à palavra
  • Comunicar-se harmoniosamente
  • Expressar-se suavemente.

Afinal, como diz um provérbio chinês, palavras ríspidas e argumentos pobres nunca resolveram nada” (p. 224-225).

Entre as palavras que constituiriam o “vocabulário taoísta” e, portanto, faria parte da ecolinguagem, o livro alinha:

“a. O EU em relação com o próximo:

– desculpa (resposta: “de nada”)

– perdão (resp.: “está perdoado”)

– com licença (resp. “pois não!”)

– paz

– benevolência

– fraternidade

– tolerância

– amor

– compaixão

………………….

  1. O EU em relação com o mundo (que inclui a relação com o próximo)

– harmonia

– flexibilidade

– adaptabilidade / amoldabilidade

– receptividade

…………………..

  1. O EU em relação consigo próprio

– serenidade

– moderação

– simplicidade

– saúde

– sabedoria (não erudição)

– tranquilidade

– humildade

– suficiência

– moderação

…………………….”

Tudo isso está em sintonia com as ideias do primeiro autor do presente ensaio apresentadas sumariamente na seção 4.

  1. A linguagem não preconceituosa

Em Couto (2007: 347-356), há toda uma gama de termos que pertencem a uma linguagem preconceituosa que não tem lugar na ecolinguagem. Entre eles temos o antropocentrismo, o etnocentrismo (racismo), o androcentrismo (machismo, sexismo), o crescimentismo (grandismo), o aulicismo (classismo) e a linguagem “culta”. O antropocentrismo nos leva a achar que somos “os reis da criação” e que todos os demais seres vivos estão aí para nos servir. Isso fica evidente em alguns nomes de animais usados pejorativamente, como bicho, animalesco, bestial, selvagem, simiesco, burro, porco, cavalo, vaca. Além disso, procuramos nos distanciar deles, usando palavras diferentes para nós e para eles, tais como versus pata.

O etnocentrismo não poderia ser mais distante dos ideais da ecolinguagem. De acordo com ele, “certo” é o que existe em nossa cultura; o que existe só na dos outros é “errado”. Essa mentalidade em levado a atrocidades como a do nazi-facismo. Ele aparece também sob a forma de racismo, que consiste em dividir a humanidade em “raças”, sendo umas poucas entre elas “superiores” e as demais “inferiores”. Essa mentalidade levou à escravidão e a todo tipo de sujeição dos segundos pelos primeiros.

Em terceiro lugar vem o androcentrismo. Desde priscas eras o homem tem se considerado superior à mulher em culturas as mais diversas. Como consequência, ele tem muito mais direitos sobre ela do que ela sobre ele, e ela tem muito mais obrigações para com ele do que ele para com ela. Mais recentemente, essa ideologia tem se manifestado sob o signo do machismo e até do sexismo. Tudo isso transparece claramente nas línguas ocidentais. Vejamos um exemplo contundente. O órgão genital masculino aparece em muitas expressões, como grande pra caralho, isso é difícil pra cacete etc. Isso atribui a ele um papel “engrandecedor”, por expressar a “virilidade”. O da mulher é o maior tabu da língua portuguesa, de modo que ninguém ousa proferi-lo em público.

O crescimentismo está intimamente associado a essa visão de mundo. O ideal de qualquer dirigente estatal é crescer, ou seja, ir de um estado menor para um maior. É o que almeja o desenvolvimentismo. Por trás de tudo isso, está a ideia de que “grande” é bom, e “pequeno” é ruim ou, pelo menos, não tão bom quanto o grande. Ainda bem que houve autores que ousaram afirmar que pequeno é bonito (small is beautiful), como fez Schumacher (1975).

Temos também o classismo, que talvez fosse melhor ser chamado de aulicismo, ou seja, hábitos e costumes dos áulicos, habitantes da corte. Eles se intitulavam corteses, sendo que os habitantes do campo eles chamavam de pessoas rudes, rústicas, que têm a mesma origem que “rural”. Seria a cortesia oposta à vilania, dos habitantes da vila. Uma parte da população é a elite (o escol), oposta à ralé, à plebe ou ao populacho. Poderíamos aduzir ainda pagão, gentio e outros, do lado rural, opostos à “polidez” dos áulicos. Modernamente, como não não há mais corte, opõe-se o campo à cidade. Assim, os habitantes das cidades, os urbanitas seriam os urbanos, que agiriam com urbanidade, por oposição ao comportamento dos rudes e rústicos habitantes da zona rural. Aqui entra o preconceito contra a linguagem rural, em que se dizem coisas como nóis vai, nóis vorta, cê tá bão? e outras. Nada no mundo justifica esse preconceito, motivo pelo qual a ecolinguagem não o aceita.

A ecolinguagem evita tudo isso. Todos esses -ismos vão na direção contrária à da harmonia requerida por ela, e na direção do conflito. Em vez de agregar, segregam. Em vez de integrar, desintegram.

  1. Discussão

O que é ecolinguagem, afinal de contas? Em sintonia com a visão ecológica de mundo e com o taoísmo, ecolinguagem é a linguagem que tem por lema central a harmonia, não o conflito; que defende a ideologia ecológica ou da vida, não a ideologia política (partidária, religiosa etc.). O problema com ideologias como a do próprio feminismo é que elas dividem, separam, levam a atritos (‘bom/mau’, ‘eu/os outros’ etc.), enquanto que a visão ecológica de mundo procura juntar, somar, integrar. A ideologia ecológica procura entender as expressões em um sentido meliorativo, não pejorativo. Tendo isso em mente, pode-se dizer que “ecolinguagem é linguagem ecologicamente correta”, mas só com essa ressalva.

Ainda em sintonia com ecologia e taoísmo, ecolinguagem é a linguagem da comunhão. Como sabemos, comunhão é a base para todo e qualquer entendimento. Quando as pessoas estão em comunhão, com o que estão se comunicando harmoniosamente em silêncio, nem é necessário que usem palavras. Por outro lado, linguagem não harmoniosa é incomunhão ou descomunhão, que só pode levar ao desentendimento. Tanto que se pode dizer que ‘entendimento’ está para ‘comunhão’ assim como ‘desentendimento’ para ‘incomunhão’. Atrito é ausência de entendimento, falta de comunhão. A sabedoria popular já deixa isso claro na palavra ‘desentendimento’. Ele se dá em situações em que não há comunhão nem comunicação, em que as pessoas não se entendem.

  1. Observações finais

Repitamos, usar ecolinguagem é admitir e assimilar a visão ecológica do mundo. Isso implica muita coisa uma vez que a ecolinguagem é muito ampla. Além de um ecoléxico, há também uma ecogramática, como postulada por David Bohm, Michael Halliday e o jovem ecolinguista dinamarquês Sune Steffensen (2008). Além disso, temos o meio ambiente. Toda variedade linguística, e a ecolinguagem não é exceção, tem relações com o meio ambiente natural, o mental e o social, como previsto na linguística ecossistêmica. Enfim, praticamente todo ensaio que se insira na ecolinguística crítica, na linguística ambiental ou na análise do discurso ecológica estará tratando de questões atinentes à ecolinguagem.

Referências

Bohm, David. 2007. A totalidade e a ordem implicada. São Paulo: Editora Cultrix, 12a. ed.

Couto, Elza K. N. do & Silva, Samuel Sousa. 2013a. Análise do discurso ecológica: ecolinguagem e ecoética. Comunicação apresentada no I EBIME, UFG, 5-6/12/2013.

Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus.

_______. 2012. O tao da linguagem: Um caminho suave para a redação. Campinas: Pontes.

______. 2013b. Análise do discurso ecológica (ADE). Disponível em (acesso em 17/12/2013):

http://meioambienteelinguagem.blogspot.com.br/2013/04/analise-do-discurso-ecologica.html

Marques, Adilson. 2013. Chi kung: ecolinguagem corporal e bioenergética. Comunicação apresentada no I EBIME, UFG, 5-6/12/2013.

Ferreira, Adelaide Chichorro. 2002. Beitrag zu einem ‘Haussprachewörterbuch’ Deutsch-Portugiesisch. In: Fill, Penz & Trampe (orgs.): 275-297.

Fill, Alwin; Hermine Penz & Wilhelm Trampe (orgs.). 2002. Colourful green ideas. Berna: Peter Lang.

Halliday, M. A. K. 2001. News ways of meaning: The challenge of applied linguistics. In: Fill & Mühlhäusler (orgs.): 175-202 (original de 1990).

Fill, Alwin & Peter Mühlhäusler (orgs.) 2001. The ecolinguistics reader. Londres: Continuum.

Malachowa, Olga. 1996. Der grüne Punkt in der deutschen Lexik. In: Fill, Alwin (org.). Sprchökologie und Ökolinguistik. Tübingen: Stauffenburg, p. 205-213.

Martí Marco, María Rosario. 2006. Ökosprache im Tourismus. In: Borrueco, M. (org.). La especialización linguistic en el ámbito del turismo. Junta de Andalucía, Consejería de Turismo, Comercio y Deporte, Colección Estudios Lingüísticos y Turismo 1, p. 93-111.

Matos, Francisco Gomes de. 1996. Pedagogia da positividade: Comunicação construtiva em português. Recife: Editora da UFPE.

_______. 2006. Comunicar para o bem: Ruma à paz comunicativa. São Paulo: Editora Ave Maria, 2ª. ed.

Sarmento, Manoel Soares. 2002. Ecolexicography: Ecological and unecological words and expressions. In: Fill; Penz & Trampe (orgs.), p. 487-492.

_______. 2012. Por uma exolexicografia. Disponível em (acesso: 11/12/13): http://meioambienteelinguagem.blogspot.com.br/2012/02/por-uma-ecolexicografia.html

Schumacher, Ernst. 1975. Small is beautiful. New York: Harper & Row.

Steffensen, Sune Vork. The ecology of grammar: Dialectical, holistic and autopoietic principles in ecolinguistics. In: Döring, Martin; Penz, Hermine & Trampe, Wilhelm (orgs.). Language, signs and nature: Ecolinguistic dimensions of environmental discourse. Tübingen: Stauffenburg, p. 89-105.

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[Este texto está publicado no livro Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora, organizado por Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto, Ema Marta Dunck-Cintra & Lorena Araújo de Oliveira Borges, Brasília: Thesaurus, 2014, p. 215-224] 

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