(Português) Esforço compartilhado por toda a sociedade: hipocrisia e ignomínia

ORIGINAL LANGUAGES, 16 Jul 2018

Roberto Sansón Mizrahi | Opinion Sur – TRANSCEND Media Service

Diante de situações de crise que setores dominantes geraram ou, quando menos, gravemente agigantaram, suas representações políticas convocam com hipocrisia e ignomínia a que a sociedade toda compartilha o esforço de recuperação e desenvolvimento. Enquanto pedem ao povo que aceite os sacrifícios para gerar em conjunto um futuro venturoso, seguem fugindo capitais para guaridas fiscais e impõem planos de resgate e políticas econômicas e culturais que protegem seus privilégios e negócios.

12 julho 2018 É tremenda a desigualdade que prima no mundo contemporâneo e não faltam explicações sobre sua gênese e acelerada reprodução. Se bem aparece como um fenômeno econômico, seu sustento é uma pugna entre grupos humanos de muito diferente poder e influências. Na base da desigualdade borbulha um desaforado, impiedoso processo de concentração de riqueza e do poder de decisão, assentado em uma cambiante diversidade de motores concentradores.

A disputa entre grupos e pessoas se dá em quase todas as latitudes com diversos graus de virulência. Em todos os casos há grupos minoritários que impõem seus interesses por sobre os de maiorias submetidas cultural, política e economicamente. O núcleo duro das disputas é pela apropriação de cota-partes do valor gerado socialmente. Aqueles que logram se apropriar de maior valor do que esses mesmos geraram disfrutam de privilégios e prebendas à custa dos esforços realizados pelo resto da sociedade. Está claro que ninguém pode acumular as enormes fortunas que existem no mundo com tão só o suor de sua fronte. Obviedade que necessita se explicitar mil e uma vezes porque, sendo indefensível a céu aberto, procura-se ocultar ou camuflar em argumentações que tentam legitimar um suposto ainda que inexistente mérito dos poderosos.

Como se essa cobiçosa apropriação de valor não fosse suficiente, o capital concentrado e seus cúmplices na política, as mídias e a Justiça, impõem sistemas tributários de natureza regressiva. Isto é, pagam proporcionalmente mais impostos os setores médios e baixos que os ricos: em muitos países não existem impostos sobre a riqueza, as transações especulativas e a herança, enquanto que há sobre o consumo de bens e serviços que cobrem necessidades básicas das grandes maiorias.

Aduzindo a necessidade de assegurar altas taxas de lucros para investimentos e especulações, outorgam-se exceções e prebendas tributárias aos que mais têm; o resto que cumpra plenamente sua “responsabilidade” tributária. Com um agravante adicional: uma enorme proporção dos que por sua renda deveriam ser maiores contribuintes evadem permanentemente o pagamento de impostos e fogem com esse roubo ao exterior (o que implica esterilizar essa parte da poupança nacional). Para isso, existem os paraísos melhor chamadas guaridas fiscais, e as equipes de profissionais que desenham formas de materializar essa evasão e ulterior lavagem de recursos não declarados. Egoísmo e cobiça sem fim que sustentam gravíssimos delitos e não envergonham aos poderosos deste mundo. Mais bem se consideram “engenhosos” porque sabem se aproveitar das circunstâncias que eles moldam a seu favor para lucrar impiedosamente sem se importar com as consequências que castigam sociedades inteiras e ao meio ambiente.

Nova classe social globalizada e suas consequências 

A situação descrita se dá em quase todos os países do mundo e seus mais poderosos atores operam ultrapassando as fronteiras nacionais; impõem um rumo planetário que lhes permite reproduzir crescentes privilégios e poder. Conseguem-no utilizando um sistema de redes junto a grupos locais que são os que facilitam com sua ação tão oprobriosa dominação.

Assim, em cada país primam os interesses e o afã de lucro de credores globais, grandes corporações multinacionais e cúmplices locais, em lugar que possa dedicar o potencial criativo e de trabalho existente para resolver necessidades e aspirações de sua própria população.     Transtornam-se os interesses que deveriam guiar a ação nacional dando lugar a uma perda de soberania na tomada de decisões e o descrédito e ilegitimidade de governantes e de amplos setores dos meios, a política e a justiça.

Os resultados estão à vista: instabilidade sistêmica e recorrentes crises, submissão social, destruição ambiental e democracias capturadas. Não há nada de casualidade no que sucede senão pura e desastrosa casualidade.

Hipocrisia e ignomínia

Quando em 2008 explodiu a grande crise primeiro nos Estados Unidos, em seguida na Europa e finalmente projetando seu impacto em quase todo o mundo, quem sofreu as piores consequências? Acaso os responsáveis que especularam desaforadamente para obter enormes taxas de lucro? Sofreram os que irresponsavelmente geraram as tremendas bolhas especulativas? Não; não foram eles os que arcaram com o custo do descalabro que geraram senão os povos de todo o mundo; só que os povos dos países mais empobrecidos e vulneráveis que têm frágeis redes de proteção social vieram acrescentar enormemente os níveis de indigência. Os povos de países desenvolvidos também são golpeados pelo processo concentrador, mas ainda conservam alguns diques de contenção para postergar a mais abjeta pobreza.

Como sempre que explode uma crise de envergadura aparecem as vozes que chama a “toda” a sociedade de cerrar filas e enfrentar unidos os furacões desatados. Um acreditava ingenuamente que é o correto e que unindo o esforço de todos, as sociedades teriam mais chances de superar tão grave desafio. Mas, ó surpresa, “toda” a sociedade não inclui verdadeiramente a todos os atores e menos ainda os mais afluentes que, longe de cerrar filas com o resto, lucra em rio revolto. Poucos percebem que, à saída de uma grande crise, os poderosos emergem mais poderosos e o resto ainda mais atrasados. Os grupos concentrados, principais responsáveis de gerar as debacles, descarregam sua responsabilidade sobre as vítimas e redobram a marcha concentradora impondo a seu favor as políticas públicas de “resgate”.

Por certo que isto não se anuncia a viva voz. O poder econômico opera ocultando o que acontece e as razões e fatores que explicam o que acontece. Não há forma de enganar as maiorias sem mentiras e desinformação, colonizando suas mentes e, se for necessário, reprimindo os setores que oferecem maior resistência.

Os dominadores capturam as democracias esvaziando-as de conteúdos de equidade, justiça, livre expressão de ideias e de desacordos. Impõem-se uma pantomima eleitoral que permite estender no tempo o processo concentrador. Conseguem fragmentar as sociedades, quebram a coesão social, dão passo a conjuntos de individualidades que renegam a solidariedade e a noção e a busca de destinos coletivos. Cada um para si; não importa “o outro”.

Cresce a frustração, as fugas alienadas ao niilismo, os vícios, o atordoamento da passividade, a frivolidade do espetáculo da vida. As esperanças cedem à desesperança.

Nesse contexto, chamar ao esforço compartilhado é pura hipocrisia e uma afronta pública; disso trata a ignomínia. Não passam por aí saídas construtivas nem nas condições de solidariedade, equidade e justiça para convocar o inteiro conjunto social. Não nos enganemos, um déficit fiscal não se elimina com sangue trabalhador, mas com os recursos que fogem dos afluentes evasores. Se pedimos que o pequeno comerciante honre com sua responsabilidade tributária, para que todos respeitem regras e regulações elas deveriam ser justas assegurando que não haverá canalhas que se apropriem do esforço coletivo e lucrem impiedosamente. Nem tampouco poderia se permitir a desonestidade de nossas lideranças que enquanto se enchem a bica de proclamas patriotas, sangram a pátria com a fuga de seus recursos para guaridas fiscais a partir de onde asseguram e seguem acumulando “o seu”; aquilo que foi extraído do fluxo nacional da genuína poupança, do investimento e o crescimento orgânico; comprometeram a geração de empregos, a ampliação de direitos e a coesão social. Dessa forma, não é possível existir em paz ajudando-nos uns aos outros.

Facilismo demagógico

Não é simples encarar os desafios que surgem ao realizar a transição entre um mundo de cru egoísmo e insensibilidade para os dolentes para outro de solidária construção coletiva. Não há caminhos sem lutas, sem mesquinharias, sem desbocados voluntarismos. Mas está claro que com o rumo econômico e os valores de cobiça sem fim que nos impuseram vamos para muito maiores dores, frustrações, olhares tortos, desesperados fundamentalismos. Se, em troca, se alinhassem esforços, talentos e a plena potência econômica, cultural, espiritual convergindo sobre um propósito de cuidado social e ambiental, muito distintos seriam os resultados e muito mais pacífico o existir.

Impõe-se organizar uma troca de rumo econômico, cultural e de atitudes para com os demais e o meio ambiente. Ninguém postula adormecer vontades, enrugar a determinação, esterilizar esforços. A convocatória de todos ao trabalho deve assegurar que seja realmente o conjunto de atores os que põem o ombro, que os que lucraram desaforadamente assumam os maiores custos e que os frutos do esforço, a criatividade, o talento, o aporte do afeto cidadão seja compartilhado com equidade e justiça.

Mudanças interiores e novos timoneiros

Será que os mesmos atores que hoje conduzem poderão gerir a mudança de rumo, o fim das prebendas e privilégios que asfixiam a sociedade inteira? Não deveria primar uma profunda introspecção que nos leva a deixar pra trás, superar, aquilo que esteriliza nossas energias, o esclarecimento e a compaixão pelos caídos, os mais sofrentes, os escanteados na miséria e abandono?

Muito fica por transformar interiormente para poder levantar as âncoras de desesperança e de passiva cumplicidade, abandonar soberbas e egoísmos, servir mais que rapinar. É certo, não é menor o que cabe encarar mas para sair da lama em que nos temos afundado não serve substituir um dominador por outro; e menos ainda, se o próximo dominador sai do próprio campo popular.

Haverá que criar ou reforçar organizações sociais e políticas, gerar novas formas de operar a economia descartando o mito que a sociedade deve se submeter aos desígnios econômicos. Sabemos que esse é um cruel engano e que sua razão de ser é defender interesses crus. A economia integra um conjunto de normas, regulações, instrumentos e procedimentos que deve estar ao serviço do bem-estar e o cuidado ambiental. Não é que se possa fazer qualquer coisa por pura vontade ou porque algum iluminado assim o propõe; nada disso. Mas está claro que é uma tosca e brutal mentira afirmar que há um só rumo e uma só forma de funcionar como sociedades. Isto dizem os embusteiros pastoreando seus privilégios e sua cobiça. Isso sim; necessitamos novos timoneiros; não é um pouco mais do mesmo. Timoneiros que exerçam sua liderança a favor dos povos e o cuidado ambiental. Por justiça, equidade e sustentabilidade do desenvolvimento são as fortunas dos poderosos grupos econômicos as que deveriam financiar a saída da demolidora ordem concentradora.

É impressionante o que uma sociedade esclarecida é capaz de lograr quando pode se erguer com outros valores, enfoques e bússolas não enferrujadas: nada menos que construir sociedades que saibam cuidar de todos e o Planeta que nos cobiça.

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