(Português) Cidadania, Florestania: A Amazônia, Titular de Direitos

ORIGINAL LANGUAGES, 29 Jul 2019

Leonardo Boff – TRANSCEND Media Service

23 julho 2019 – Fenômenos novos exigem palavras novas. Assim cidadania se deriva de cidade e florestania, de floresta. Esta nova palavra, florestania, foi criada no Estado do Acre, sob o governo de Jorge Viana, representando conceito novo de desenvolvimento e de cidadania no contexto da floresta amazônica.

O propósito é implementar a cidadania dos povos da floresta, dos indígenas, dos seringueiros e dos ribeirinhos que se traduz por investimentos públicos na educação, na saúde e nas formas de produção extrativista, tendo como referência maior a floresta e sua derivação a florestania.

Parque Nacional da Serra do Pardo.WWF-Brasil / Adriano Gambarini

Floresta e ser humano vivem um pacto sócio-ecológico includente, onde o ser humano se entende parte da floresta e a floresta passa a ser um novo cidadão, respeitado em sua integridade, biodiversidade, estabilidade e luxuriante beleza junto com os outros cidadãos humanos. Ambos são beneficiados – povo e floresta – pois abandona-se a lógica antropocêntirca e utilitarista da exploração e se assume a lógica ecocêntrica, da mutualidade que implica respeito mútuo e sinergia.

Esta compreensão abre espaço para um enriquecimento possível do conceito de cidadania a partir da reflexão ecológica mais avançada. Agora trata-se da florestania não só como cidadania na floresta mas como cidadania da floresta. A floresta é considerada, pois, como um novo cidadão.

A compreensão que subjaz a esta afirmação e que entrou nas constituições do Equador e da Bolívia, reside no fato de a natureza e a Terra serem a condição necessária para a vida. Esta somente existe porque é sustentada pelos fatores físico-químico-ecológicos terrestres sem os quais não haveria vida. Se a vida tem dignidade, fato aceito por todos, ela engloba também a dignidade dos elementos que a tornam possível sobre o planeta.

Ademais, a natureza e a Terra possuem valor em si mesmo, independente da existência humana, que irrompeu quase no final do processo cosmogênico. Tendo valor em si mesmo, Terra e natureza, devem ser respeitadas. O próprio ser humano há de se entender parte da natureza e da própria Terra, formando com elas uma grande e única entidade. Este é o o legado que os astronautas nos transmitiram de suas naves espaciais e da Lua: Terra, natureza e humanidade formam uma única e complexa entidade.

Nesta visão, mais e mais sustentada pela moderna biologia e cosmologia, a floresta como floresta, a natureza bem como a Terra são vistas como sujeitos e como cidadãos e como tais titulares de direitos.

Isso ficou mais claro quando a ONU numa sessão solene no dia 22 de abril de 2009 decidiu chamar a Terra de Mãe Terra, dando-lhe a ela o mesmo tratamento que devotamos às nossas mães: o respeito, o cuidado e a veneração.

Impõe-se, portanto, a ampliação da personalidade jurídica à floresta, aos ecosistemas e à Terra como Gaia. Bem disse o pensador Michel Serres: “A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 teve o mérito de dizer ‘todos os homens têm direitos’ e o defeito de pensar ‘só os homens”. Os indígenas, os escravos e as mulheres tiverem que lutar para serem incluídos em ‘todos os homens”. E hoje esta luta inclui as florestas e outros seres da natureza também sujeitos de direitos e, por isso, novos membros da sociedade ampliada.

Por fim, há que se incluir a própria Terra, como Gaia, super-organismo vivo, no rol dos cidadãos. Ela seria aquela realidade cidadã que cria as condições para todos os outros tipos de seres, como seu valor intrínseco e sujeitos de cidadania.

As novas ciências, a astrofísica e a cosmologia nos asseguram que o universo não resulta da soma de todos os seres existentes e por existir, como se estivem justapostos uns aos outros. Todos eles se encontram inter-retro-conectados. O universo é o conjunto articulado das conexões de tudo com tudo em todos os pontos e momentos. Todos os seres não são apenas portadores de massa e de energia mas também de informação trocada, retrabalhada e estocada de um jeito singular e próprio a cada ser.

O fator relação e inter-dependência de todos com todos,o Papa Francisco em sua excepcional encíclica sobre ecologia integral “sobre o cuidado da Casa Comum”(2015) repetidas vezes enfatizou:”nenhuma criatura se basta a si mesma…tudo está interligado..tudo está relacionado”(nn.86, 118, 120).

Com efeito, depois de termos criado a ameaça de destruição da Terra-Gaia não podemos mais exclui-la do novo pacto social, como o fizeram Hobbes, Rousseau e Kant, no passado, e Habermas e Appel no presente. Estes davam e dão por descontado o futuro da Terra. Hoje não é mais assim. Devastada Gaia, não há mais base para nenhum tipo de cidadania e de direitos, pessoais, sociais e naturais. Se quisermos sobreviver juntos, a democracia tem de ser também biocracia e cosmocracia, numa palavra, uma democracia sócio-ecológica.

A partir disso admitem eminentes cientistas que o universo e cada ser são portadores de níveis diversificados de consciência e possuem algum tipo de subjetividade, fruto das inter-relaçãos que entretém entre todos. A diferença entre a subjetividade humana e aquela do universo ou das florestas ou de outros seres não é de princípio mas de grau.

Em nós, em grau altamente complexo e, por isso auto-consciente, no universo e na floresta amazônica num outro, menos complexo, mas igualmente com grau próprio de consciência e de subjetividade. Por isso a floresta interage, sente, sofre, se alegra, dá seus sinais, responde e nos dá lições, algumas sábias e outras duras. Mas mostra que ela quer ser escutada, atendida, respeitada e incluída no cuidado humano.

Se a florestania fôr assumida num sentido amplo como postulado aqui, enquanto cidadania na floresta e da floresta, assistiremos a algo inédito no mundo. Na região da maior biodiversidade do planeta, na floresta amazônica, se inaugurará um novo ensaio civilizatório, referência possível para as demais florestas tropicais da Terra, assumidas e respeitadas como cidadãos. E comprovar-se-á a realidade de um desenvolvimento não predatório, de um ser humano feito anjo bom da Terra e não o seu satã ameaçador.

O cuidado das pessoas, das sociedades, da natureza e da Casa Comum será a atitude mais adequada e imprescindível para a nova fase da história da humanidade e da própria Terra.

_________________________________________________

Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000;  A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016;  Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010;  A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, paixão do mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018. Boff escreveu “Destino e Desatino da Globalização” em: Do iceberg à Arca de Noé, Mar de Ideias, Rio 2010 pp. 41-63.

Go to Original – leonardoboff.wordpress.com


Tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Share this article:


DISCLAIMER: The statements, views and opinions expressed in pieces republished here are solely those of the authors and do not necessarily represent those of TMS. In accordance with title 17 U.S.C. section 107, this material is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. TMS has no affiliation whatsoever with the originator of this article nor is TMS endorsed or sponsored by the originator. “GO TO ORIGINAL” links are provided as a convenience to our readers and allow for verification of authenticity. However, as originating pages are often updated by their originating host sites, the versions posted may not match the versions our readers view when clicking the “GO TO ORIGINAL” links. This site contains copyrighted material the use of which has not always been specifically authorized by the copyright owner. We are making such material available in our efforts to advance understanding of environmental, political, human rights, economic, democracy, scientific, and social justice issues, etc. We believe this constitutes a ‘fair use’ of any such copyrighted material as provided for in section 107 of the US Copyright Law. In accordance with Title 17 U.S.C. Section 107, the material on this site is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. For more information go to: http://www.law.cornell.edu/uscode/17/107.shtml. If you wish to use copyrighted material from this site for purposes of your own that go beyond ‘fair use’, you must obtain permission from the copyright owner.

Comments are closed.