A missão sigilosa era reservada aos pastores brasileiros, mais próximos da cúpula da igreja. Religiosos angolanos afirmaram que não tinham acesso às contas da Universal. Como essa transferência de recursos seria ilegal – não declarada –, a operação sigilosa era uma maneira, segundo eles, da igreja espoliar recursos do país – e garantir a irrigação de dinheiro para o império de Edir Macedo. Mais especificamente, para o braço europeu dele.

As denúncias de uma rota de transporte de dinheiro entre África e Europa apareceram pela primeira vez há quatro anos, quando o ex-bispo Alfredo Paulo Filho, responsável pela Universal em Portugal entre 2002 e 2009, passou a fazer denúncias contra a igreja em vídeos na internet. Alfredo rompeu com a Universal em 2013.

Agora, porém, os relatos ganham respaldo de outros religiosos ligados à igreja, também rompidos com Edir Macedo e que passaram a liderar em Angola um movimento chamado de Reforma. Os bispos angolanos Valente Bezerra Luís e Felner Batalha, o brasileiro João Leite, ex-bispo da Universal responsável por Angola até 2017 e o ex-pastor angolano Tavares Armando Cassinda não apenas reforçam as acusações, como, pela primeira vez, também revelam mais detalhes sobre a suposta rota de remessas de dinheiro da África para a Europa.

Bispo Edir Macedo – Reprodução/Facebook

A colheita depois da fogueira santa

“Tenho conhecimento de que havia evasão de divisas, e o dinheiro ia para a África do Sul”, me disse Felner Batalha, vice-líder da Iurd em Angola até 2018 e, até essa época, o então auxiliar imediato do bispo João Leite no comando da igreja no país. Para o bispo Batalha, a Universal arrecadaria em Angola algo entre 50 milhões e 60 milhões de dólares ao ano. Já o bispo Valente Luís, o vice-líder da Iurd em Angola depois de Batalha, até 2019 – e agora apontado com o novo líder da reforma angolana –, o montante anual dos dízimos e ofertas recolhidos superaria os 80 milhões de dólares.

“Angola sustenta Portugal e a Europa”, afirmou o brasileiro João Leite, em um áudio publicado no YouTube, em abril de 2019. O ex-homem forte da Universal no país também rompeu com Edir Macedo após ser flagrado em um caso de adultério – confessado em vídeo. Segundo Leite, somente de Moçambique, um país vizinho, teriam saído, dois anos antes, 4 milhões de dólares para a África do Sul.

Segundo as denúncias, somas coletadas pelos templos em Angola chegavam a 80 milhões de dólares.

“Vi que ele [João Leite] falava disso. Ele tinha informações melhores do que eu sobre o fato de Angola sustentar a Europa”, me disse o bispo Batalha, transferido há dois anos de Angola para a catedral da Universal no Rio de Janeiro. Naquele momento, ele havia começado a denunciar os problemas existentes na igreja, inclusive “evasão de divisas”, como relatou em carta a Edir Macedo de 2018. No documento, Batalha expôs sua insatisfação. E acabou afastado.

Instalada em mais de 90 países, a Universal tem cerca de 500 mil fiéis em Angola, segundo informações da própria igreja. País pobre, apesar de possuir grandes reservas de petróleo e minas de diamante, Angola tem 30 milhões de habitantes – 41% católicos e 38% evangélicos – e enfrentou uma guerra civil de três décadas, encerrada apenas em 2002.

Segundo as denúncias, as somas coletadas nos templos angolanos eram cobiçadíssimas – estimadas pelo bispo Valente Luís em 80 milhões de dólares por ano, superariam as de países como Portugal. O ex-bispo Alfredo Paulo afirmou que as jornadas à África do Sul costumariam ocorrer depois de uma das maiores campanhas de arrecadação da Universal, a chamada Fogueira Santa de Israel. É um momento em que “nada é impossível” para os verdadeiros crentes e fiéis, que chegam a doar todo o seu salário e bens pessoais como prova inequívoca de sua fé.

Também afastado por trair a mulher, Alfredo Paulo havia revelado que o dinheiro de Angola era levado para Portugal e, dali, para países como os Estados Unidos e Reino Unido, onde ajudava a manter as operações da TV Record na Europa. Segundo ele, Edir Macedo, com seu avião particular, recolheria pessoalmente essas quantias duas vezes ao ano. Como Alfredo não apresentou provas documentais, suas declarações à época não sensibilizaram autoridades africanas e europeias.

“A minha prova sou eu. Participei e vi com os meus olhos. Se eu tirasse fotos, não ia chegar aonde cheguei na igreja”, declarou à Folha de S.Paulo. As acusações renderam processos da Universal contra o ex-bispo por calúnia e difamação. Seguindo seu costumeiro modo de ação com conteúdos críticos, a igreja encaminhou dezenas de pedidos à justiça para retirar os vídeos com as denúncias das redes sociais. Em alguns casos, obteve sucesso ao reivindicar direitos autorais pelo uso de imagens produzidas por seus religiosos e pela TV Record.

A Universal negou tudo e chamou o dissidente de “mentiroso”. Em nota, afirmou: “Confiamos que a justiça brasileira revelará onde está a verdade nesta mais nova tentativa de manchar a imagem da Universal, punindo exemplarmente o mentiroso”. O ex-bispo perdeu uma disputa em primeira instância: a juíza Raquel de Oliveira, da 6ª Vara Cível do Rio de Janeiro, determinou que ele pedisse desculpas públicas e pagasse multas no valor de R$ 1,8 milhão por violar a honra e a reputação da Universal. O bispo não fala sobre o processo.

Ao Intercept, a Universal reforçou a nota e afirmou que Alfredo Paulo “foi condenado pela justiça brasileira por estas e outras mentiras que contou sobre a Igreja Universal do Reino de Deus e por haver caluniado bispos e pastores da instituição” e que deve multas e indenizações que já ultrapassam R$ 5 milhões.

Mala de dinheiro, acidente e peregrinações

Segundo as primeiras denúncias de Alfredo Paulo, o dinheiro da Universal saía de Angola por via terrestre para chegar a Edir Macedo. Nos dias seguintes à Fogueira Santa – período fértil para a coleta de ofertas –, Macedo, que tem passaporte diplomático, desembarcaria em Portugal com o seu avião particular, segundo o relato do ex-bispo da Universal. De lá, o jato seguiria para a África do Sul e voltava carregado. Alfredo Paulo seria o responsável por pegá-lo no aeroporto em Portugal. “Eu que ia pegar o dinheiro. Pegava a mala, botava dentro do carro e levava. Ficava lá em casa”, revelou o religioso.

O dinheiro vindo da África seria trocado por euros diretamente com doleiros em Portugal, disse Alfredo. Ficaria em sua casa até ser depositado, em partes, numa agência do banco BCP. Entraria então na conta da Universal como se fosse oriundo de dízimos de fiéis portugueses, disse. Depois, “o dinheiro saía para os Estados Unidos, para o Reino Unido e para a Record”. O ex-bispo calcula que a Record da Europa receberia cerca de 500 mil euros ao mês da operação.

Esse dinheiro, observou Alfredo Paulo, deveria ser contabilizado pela igreja em Angola. Mas não foi. Na sequência, saiu do país sem autorização. Entrou na África do Sul, mais uma vez, sem ser declarado. “E da mesma forma entrou em Portugal”, ressaltou o ex-bispo.

‘Se um grupo de 20 pastores casados viajava, eram 40 pessoas levando dinheiro’.

Ele admite que cometeu um ato ilegal. “Entramos novos na igreja. A gente vai acreditando que o que se faz ali é para o benefício da obra. Você acredita nisso. Sabe que é errado, que não está correto. Mas se é para a obra… Para que serviria aquele dinheiro na minha cabeça? Era para abrir igreja num outro país e desenvolver o trabalho. Aí, ninguém questiona”, explicou. “O bispo Macedo já falou várias vezes, em reunião, que para a obra de Deus vale até gol de mão”.

O esquema teria vigorado, segundo Alfredo, durante os sete anos em que permaneceu em Portugal. Ele diz que seria fácil comprovar a presença de Edir Macedo no país naquele período, sempre após as campanhas da Fogueira Santa.

Os religiosos angolanos Batalha, Valente Luís e Tavares Cassinda, agora, revelam mais detalhes sobre a suposta operação de envio de dinheiro para o exterior. Segundo eles, houve o caso de um pastor brasileiro, chamado Abel, que morreu em um acidente de carro, em 2016, na África do Sul, quando transportava dinheiro de Angola para o país vizinho. “Tive conhecimento deste caso do falecimento do pastor Abel que levava dinheiro de Angola para a África do Sul. Não somente eu. A maioria dos pastores angolanos sabe desse episódio”, me disse Felner Batalha, à época pastor em Johanesburgo, na África do Sul.

O caso do brasileiro Abel já foi mencionado em vídeos no YouTube pelo ex-pastor da Universal angolano Tavares Armando Cassinda. Segundo ele, um outro religioso dirigia o carro quando aconteceu o acidente. Esse religioso teria fugido sem prestar socorro. “Depois incriminaram o Abel. Disseram que ele estava roubando a igreja”, contou o ex-pastor, agora youtuber. Cassinda diz que, à época, a Universal teria conseguido “abafar o caso”. O bispo Valente Luís também comentou o caso em um vídeo e lançou um desafio à representação brasileira da igreja. “Aquele carro, dirigido pelo bispo Itamar [outro representante da igreja], onde morreu o pastor Abel, acho que aquele carro levava documentos para a África do Sul. (…) Venha a público e desminta que havia evasão de divisas”, provocou o bispo.

Felner Batalha ainda relata outro método utilizado para tirar o dinheiro de Angola. Segundo ele, grupos de até 100 pastores, acompanhados de suas esposas, carregariam dinheiro em peregrinações ao Templo de Salomão, em São Paulo, e a Israel, Moçambique e África do Sul. “Esses pastores levavam um valor permitido por lei. Em um dado momento, o cidadão angolano podia sair com 15 mil dólares, e o estrangeiro com até 10 mil. Depois, esse valor foi reduzido para 10 mil dólares para cidadão nacional e 5 mil para cidadão estrangeiro”, me explicou o bispo. “Se um grupo de 20 pastores casados viajava, eram 40 pessoas levando dinheiro. Quando chegavam no país de origem, esse valor era recolhido e entregue a uma pessoa específica. Em Israel e no Templo de Salomão tiveram peregrinações com 100 pastores”.

A grande Reforma

O esquema de crimes fiscais foi um dos estopins para uma insurgência de bispos e pastores angolanos contra a cúpula brasileira, no movimento chamado por eles de Reforma. Os religiosos locais – mais de 300 de um total de 455 – assumiram o controle de 85% dos 331 templos da Universal no país. Parte dos pastores brasileiros retornou. A TV Record, no Brasil, exibiu imagens de pastores brasileiros que chegaram a ser expulsos de suas casas. A Universal reclamou da falta de ação do Itamaraty.

Os reformistas, como se autointitulam, elaboraram um manifesto acusando a representação brasileira da igreja da prática de crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e expatriação ilícita de capitais, além de racismo, discriminação, abuso de autoridade, imposição da prática de vasectomia aos pastores e intromissão na vida conjugal dos religiosos. As denúncias passaram a ser investigadas pela Procuradoria-Geral da República de Angola e pelo SIC, o Serviço de Investigação Criminal, o equivalente a um misto entre as polícias Civil e Federal no país.

Promotores e policiais cumpriram mandados de busca e apreensão em escritórios da igreja e residências de bispos e pastores. As autoridades angolanas apreenderam computadores, câmeras de segurança, livros de contabilidade e documentos bancários apreendidos.

Ao menos 25 catedrais e templos da Universal foram fechados e confiscados pelas autoridades do país. A Entidade Reguladora de Comunicação Social Angolana repreendeu a TV Record de Angola e a TV Zimbo (emissora que veicula programas religiosos da Universal) por terem reagido com críticas e ataques ao movimento dos pastores e às ações da polícia e do Ministério Público. A Universal, em nota emitida em julho, mais uma vez se disse vítima de calúnia e difamação e afirmou que seus opositores seriam ex-membros expulsos da igreja “devido à prática de atos ilícitos e à violação do código de conduta moral”.

Bolsonaro pediu ao presidente de Angola, João Lourenço, garantias de proteção ao patrimônio da Universal.

Os bispos e pastores angolanos – que garantem nunca ter interrompido suas atividades –, reclamavam do fato de o dinheiro da igreja arrecadado com os dízimos e ofertas não permanecer no país e nunca ser investido nas atividades religiosas ou em escolas e projetos sociais. Daí, segundo eles, veio a insatisfação.

Outra irregularidade apontada pelos religiosos angolanos seria a venda de imóveis da igreja. Segundo Batalha, o patrimônio era vendido às escondidas, sem nenhum tipo de escrutínio dos religiosos angolanos – o que seria ilegal. “Eram mais de 200 imóveis a serem vendidos, entre terrenos e apartamentos, além de veículos”, comentou. “Estava-se a alienar o patrimônio da associação, nesse caso a igreja, sem o consentimento dos membros”, diz o bispo. A operação seria liderada pelo bispo brasileiro Honorilton Gonçalves, que nega.

Batalha, porém, diz existir documentos que comprovariam essas transações. Um desses imóveis, como o de uma área onde estava prevista a construção de uma universidade ligada à Universal, foi avaliado em 16,5 milhões de dólares, segundo documentos divulgados ao Intercept pelo bispo. Outros, como o de uma área na barra do rio Cuanza, em Luanda, em 7,2 milhões de dólares.

Nem os então presidente da Universal em Angola, Pedro Correia, e o vice-líder, Valente Luís, sabiam dessas vendas, segundo Batalha. “Quando a assembleia geral composta pelos membros, pastores e bispos não sabe dessa alienação do patrimônio, quando nem os dirigentes são informados, então, os fins são inconfessos. Se fosse um fim lícito, para beneficiar a igreja, não haveria por que não anunciar, não comunicar e não pedir a autorização da assembleia geral para vender os imóveis”, criticou o bispo. Os religiosos que se opõem à gestão brasileira encaminharam à justiça angolana uma medida cautelar para impedir as transações.

Contatada, a Procuradoria-Geral da República de Angola informou que foram realizadas ações de buscas e apreensões em templos, escritórios e residências de bispos e pastores para “reunir provas indiciárias sobre os crimes objetos de investigação e instrução”. De acordo com notas do Ministério Público, existem suspeitas de “violência doméstica (coação moral), ameaças, associação criminosa e gestão danosa”, além de fraude fiscal e exportação ilícita de capitais. A Procuradoria ressaltou que a instrução de processos-crimes em Angola é secreta. “Todavia, é óbvio que o material apreendido será objeto de perícia e serão ouvidas as pessoas que o Ministério Público considerar imprescindíveis para esclarecimento da verdade material dos fatos, no tempo que for oportuno”.

O presidente Jair Bolsonaro chegou a pedir ao presidente de Angola, João Lourenço, garantias de proteção ao patrimônio da Universal e a pastores brasileiros que estariam, supostamente, sendo ameaçados. Lourenço prometeu um “tratamento adequado” do caso na justiça.

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Gilberto Nascimento@gibanascimento

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