(Portuguese) Sobre Ombros de Gigantes

ORIGINAL LANGUAGES, 10 Sep 2012

Marcela Godoy, Consciência Animal – TRANSCEND Media Service

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (Fernando Pessoa)

Semana passada [16 Aug 2012], ministrei um mini curso na UEL – Universidade Estadual de Londrina – Pr, durante o II Encontro de Ciências Biológicas. Dessa vez, trabalhei o tema Vivissecção no Ensino e na Pesquisa.

Obviamente, o mini curso aconteceu pelo viés da anti-vivissecção.

Por mais que tenhamos segurança ao tratar certos temas publicamente, pensar a respeito de quem serão nossos interlocutores, sempre gera uma expectativa. Mas munidos de muita leitura, muita didática e muita coragem no sentido Socrático, lá fui eu, mais uma vez, para a arena. Não se trata de uma arena no seu sentido literal, com conotação negativa, mas uma arena onde sempre há um embate no nível das idéias e um certo grau de exposição.

Ao trabalhar qualquer tema que envolva o abolicionismo do uso de animais (ensino, pesquisa, alimentação, vestimenta, competição, e tantos etc) é impossível não fazer referência implícita ou explícita ao nosso posicionamento e conduta. Se implícita, a justificativa pela opção de um estilo de vida fica clara nas entrelinhas de tudo o que falamos durante uma exposição como essa e em nossa postura. Trabalhar tais temas é essencialmente, se expor.

Entre os participantes do mini curso, havia professores e estudantes da área de Ciências Biológicas e Biomédicas. Quatro vivisseccionistas que, como os demais, ouviam tudo atentamente. No início, os interlocutores mostram-se um tanto reticentes nos comentários e questionamentos. Alguns desconfiados. Normal. Mas à medida que os diálogos iam acontecendo, a teia do especismo, da mídia, dos hábitos impostos, da tradição, da hegemonia da exploração animal foi sendo aos poucos desemaranhada, revelando um cenário bem escondido. Não é mais surpresa constatar o quanto as pessoas demoram a ver o óbvio. O apogeu de encontros como esses é sempre o momento de discussão, desconstrução e deslocamentos de pensamento. Argumentos, contra argumentos, posicionamentos opostos e refutações. Se bem embasado, o discurso desconstrói argumentos que nem mesmo chegam a ser colocados.

As sucessivas intervenções nos levam a prever na maioria das vezes (não em todas) qual pergunta será feita, qual a provocação da vez. E antecipar. Ao final do curso/palestra/mini curso/intervenção, vem o relaxamento e a sensação de ter provocado os interlocutores a pensar em algo que não haviam pensado antes. Aí reside a mola propulsora de qualquer atividade educativa.

Ao final desse mini curso da UEL, alguns já não se apresentavam tão convictos assim. Alguma coisa aconteceu. Não deduzi pelas suas expressões, mas por suas falas. Inclusive dos vivisseccionistas. Maior prova de que a mágica da educação acontece em momentos como esse. Vi lágrimas, caras de espanto, indignação, indiferença. Não sou ingênua ao ponto de pensar que uma fala de quatro horas pode gerar transformações significativas para sempre. Mas se o que falamos tem fundamento, sempre fica uma mensagem para se pensar além.

Não apresentei nada apelativo, apenas verdades dos bastidores da pesquisa e do ensino baseados na vivissecção.

Muitas vezes o curso acaba mas a discussão continua. Na sala mesmo ou, conforme as circunstâncias, segue para o boteco/restaurante mais próximo ou outro ambiente.

Rubem Alves em seu texto “Sobre Moluscos e Homens”, faz uma comparação do ato educativo com o ato sexual e diz: “(…) é o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de ‘conhecimento’… sem excitação, a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de ‘burrinho’… Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital”. Não pude também, deixar de comparar o ato educativo ao ato sexual: preliminares, ápice e relaxamento. Preliminares: apresentação de argumentos, leis, teorias, embasamento teórico, o que já foi estudado, principais estudiosos/pesquisadores e suas descobertas, um comentário aqui, outro ali, pausadamente, com cautela, timidez. Provocação. Depois vem o Ápice: discussões, contra-argumentos, ânimos exaltados, revelações, desconstruções, e sempre com a cautela de nunca partir para a agressividade. Um embate de idéias, não de pessoas. Por fim, o relaxamento: sensação de ter mudado algo na mente e no coração. Paz, tranqüilidade. Comentários aqui e ali. Para alguns foi bom, para outros, não.

Por vezes, em uma atividade educativa só há as preliminares, sem ápice e sem relaxamento. Talvez não tenhamos caprichado tanto ou os interlocutores não estão receptivos ou preparados…e nunca conseguimos atingir a todos.

Nesse processo valem muito os depoimentos e as avaliações escritas que sempre faço e leio depois. Duas coisas ficam claras: (1) a maioria dos participantes não tem idéia do holocausto animal que acontece todos os dias; (2) constata-se mais uma vez o grande poder de engodo da indústria da exploração animal. Nesses cursos os participantes são munidos de informação. Mas a informação sozinha não produz consciência crítica. Por isso sempre torcemos para que essa informação gere conhecimento capaz de transformar suas mentes e vidas. Em cursos como esse, não podemos acompanhar a evolução dos participantes, como acompanhamos por vezes, na escola e na universidade. Mas a semente é sempre lançada.

Após mais esse mini-curso ministrado na UEL (com direito a preliminares, ápice e relaxamento), fiz uma retrospectiva dos cursos anteriores e aulas e palestras e etc e pensei que nunca vou para a “arena” sozinha.

A frase de Newton que dá título ao presente texto é emblemática: “se eu vi mais longe, foi por estar em pé em ombros de gigantes”. Durante todo o processo de planejamento, execução e auto avaliação, procuro estar na companhia de gigantes o tempo todo. Na companhia dos trabalhos desses gigantes.

Se consigo hoje, transpor e defender uma idéia animalista abolicionista ao ponto de colocar outras pessoas para pensar é porque o meu conhecimento foi construído sobre o trabalho de outras pessoas que fizeram da causa abolicionista, vegana, animalista, um nobre propósito de suas vidas.

Certa vez, conversando com Sônia Felipe, ela usou uma metáfora que achei muito interessante: um muro separando a luz (conhecimento) das trevas (falta de). Os desbravadores abrem um furo nesse muro e iluminam o caminho para que outras pessoas possam enxergar. E aos poucos o furo vai aumentando. E mais pessoas enxergando. É o que acontece comigo: exerço minha autonomia de educadora, pesquisadora, cidadã e etc. Mas enxergo os caminhos devido ao feixe de luz que essas outras pessoas vão lançando.

Essas pessoas são muitas. E elas tem nome. No curso sobre vivissecção por exemplo, me apoiei nos ombros de gigantes como Tom Regan, Sônia Felipe, Nina Rosa, João Epifânio Régis Lima, Thales Tréz e tantos outros. Sou muito grata a todos.

Não nasci vegana. Por mais paradoxo que soe, hoje, aos meus ouvidos, já fui a circos, já vi rodeios, já quis comprar cachorrinho no pet shop, já usei bota de couro, achava que comer ovos e leite não tinha nada de mais, entre tantas coisas. O que aconteceu? Onde iniciou e como, um processo que pauta todas as minhas atitudes e escolhas? Analisando o processo, (sim, porque é um processo, está sendo um processo), não posso dizer que houve um fator apenas a determinar essas escolhas, mas vários, em diferentes momentos. E todos se deram pela via da leitura e da busca de informação. Foi meu “momento damasceno”. Para dar conta desse processo, preciso me apoiar nos ombros também de gigantes como Gary Francione, Peter Singer, Carol Adams, e colegas de profissão como o pioneiro Leon Denis, Andresa Jacobs, Aleluia Heringuer, entre outros. Me apoio (de novo) nos ombros de Sônia Felipe e Nina Rosa, (duas grandes responsáveis pelo meu e tantos outros processos damascenos). Me apoio no ombro de gigantes como a ANDA (em todos os colunistas, reportagens, vídeos, notícias) desde o tempo que eu era leitora cada vez mais assídua e mais indignada.

Se hoje posso ver além do que me foi imposto com relação ao tratamento e destino dos animais, foi porque alguém veio antes desbravando o caminho. E, embora eu não seja gigante, tenho tido a oportunidade em minhas aulas e onde mais sou convidada a falar, de oferecer meus ombros para quem estiver disposto a enxergar um pouquinho além.

Por mim e principalmente pelos animais não humanos, agradeço aqui a todos os nominados e não nominados (são muitos) que me ofereceram e oferecem seus ombros como apoio técnico, científico e moral. Que fizeram o furo no muro. E que continuam a iluminar os caminhos.

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Marcela Teixeira Godoy. Bióloga, Professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Coordena e trabalha com projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão voltados para o abolicionismo animal. Doutoranda em Ensino de Ciências na Universidade Estadual de Londrina.

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