(Português) Os abutres, isolados do mundo

ORIGINAL LANGUAGES, 11 Aug 2014

David Cufré, Página/12 –TRANSCEND Media Service

Não deixa de chamar atenção que a Argentina obtenha apoio de parte de alguns símbolos desses setores, como o editorialista estrela do Financial Times.

A disputa da Argentina com os fundos abutres tornou-se uma temática proeminente.

A disputa da Argentina com os fundos abutres tornou-se uma temática proeminente.

O papel da Argentina no Consenso de Washington desde o início dos anos 90 lhe rendeu conhecimento internacional. A vontade política expressada pelo menemismo para levar adiante uma política de organização social baseada nos critérios do mercado acumulou elogios dos centros de poder globais.

Simbolicamente, os Estados Unidos até suprimiram o requisito de tramitar visto aos cidadãos argentinos para entrada em seu território. Cada assembleia do Fundo Monetário Internacional era propícia para colocar a Argentina como exemplo de país sério, ordenado, capaz de deixar para trás suas contradições e se atirar em um sistema econômico moderno.

Neoliberalismo em seu estado puro: redução do Estado à sua expressão mínima, livre fluxo de entrada e saída para os capitais especulativos, primazia da valorização financeira sobre a produção, abertura comercial, privatizações – hidrocarbonetos, energia elétrica, telecomunicações, transporte, serviços básicos, indústrias-chave como a siderurgia, a naval e a aeronáutica, espectro radioelétrico e até confecção de passaportes – entrega ao setor financeiro a administração das aposentadorias e desregulamentação trabalhista. Todas essas políticas tiveram sua tradução institucional em leis, decretos e resoluções.

Também houve acordos internacional que tornaram ainda mais profunda a marca do caminho traçado. Atualmente, alerta-se em toda sua dimensão o que significou ceder à solução legal de controvérsias com títulos da dívida nos tribunais dos Estados Unidos. E antes, já haviam sido comprovados os efeitos de aceitar o Ciadi, o tribunal do Banco Mundial para dirimir eventuais conflitos com as privatizadas. Os Tratados Bilaterais de Investimento que floresceram na América Latina acabaram por empacotar a soberania jurídica e outorgá-la aos países mais poderosos.

Se fossem analisadas uma por uma todas as políticas que alimentaram aquela Argentina que acabaria estalando em 2001, seria fácil encontrar nos arquivos documentos e declarações dos “líderes do mundo”, enfatizando sua admiração por tanto compromisso argentino com suas ideias. Conseguiram uma identificação assustadora com os interesses econômicos de seus países, empresas e capitais como se fossem de interesse nacional. Que a Repsol assumisse o controle da YPF, por exemplo, seria o melhor para a Argentina porque permitiria que fizesse render em todo seu potencial as riquezas subterrâneas, algo que a gestão estatal não poderia fazer.

A imprensa local mais influente fez um empréstimo valioso para viabilizar politicamente iniciativas que atentavam contra as maiorias. Os sócios locais daqueles capitais e companhias estrangeiras também fizeram sua parte e, neste bloco,  se destacaram – e ainda se destacam – os economistas, que conseguiram ser apresentados pela mídia como gurus. Nesta tarefa sempre foi muito útil a utilização de eufemismos ou conceitualizações vaporosas: a Argentina deveria ser um país sério, moderno, integrado ao mundo.

A eclosão de 2001 varreu com essa estrutura argumentativa e o que ficou à vista de todos foi a realidade. Já não havia maquiagem suficiente para tapar os resultados da doutrina neoliberal, que o país havia abraçado com tanto entusiamo.

Os mesmos “líderes mundiais” que tinham enchido a Argentina de elogios não tiveram vergonha de esconder quanto ganharam seus países, empresas e capitais e colocaram a culpa do ocorrido na “irresponsável” dirigência política local, que não teve a capacidade de fazer o ajuste como deveria. Em todo caso, a administração política local ganhou o “que se vayan todos” por ter seguido de forma tão potente os comandos que chegavam de Washington.

Tanto cinismo, por fim, abriu uma brecha para um projeto político diferente daquele desenvolvido até então. O processo aconteceu com caraterísticas semelhantes na América Latina. E as respostas da imprensa dominante também foram semelhantes. A técnica do eufemismo, apesar de tudo, não desapareceu. Nestes dias de dura luta travada com os fundos abutres, fui ler o jornal La Nación. Em suas páginas, pediu “plasticidade” por parte do governo para resolver o conflito.

Plasticidade, neste caso, seria aceitar as condições dos abutres, que entregariam o país a julgamentos multimilionários, fazendo ruir a reestruturação da dívida de 2005 e 2010.

Mas há uma novidade nesta etapa, que contrasta com o que aconteceu até 2001.

As mensagens que chegam dos espaços de poder internacionais não são uniformes. Não há um discurso único como o que havia até então. Isso talvez seja a melhor expressão da decomposição pela qual atravessa um sistema econômico global monopolizado por setores financeiros.

Neste contexto, a disputa da Argentina com os fundos abutres tornou-se uma temática proeminente. Completa uma etapa iniciada em 2008 com a crise das hipotecas subprime nos Estados Unidos. A principal potência mundial experimentou na própria pele os efeitos da desregulação financeira. Isso sacudiu o tabuleiro. Estados Unidos e Europa deveriam aceitar, por exemplo, a convocatória do G-20 para canalizar a situação, dando espaço na mesa de tomada de decisões países em ascensão, como os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e outros países, em um mundo multipolar.

O reconhecimento internacional para a Argentina nos anos 90 vinha pela direita. Agora, não deixa de chamar atenção que o país obtenha apoio de parte de alguns símbolos desses setores, como o editorialista estrela do Financial Times ou a mesmíssima Anne Krueger, outrora número dois do FMI em 2001. A lista de países e instituições que apoiam a posição do governo – um governo progressista, de ruptura com o establishment financeiro, que fez a maior quitação na maior reestruturação da dívida da história – é impactante. E isso também diz respeito ao fato de a economia internacional estar no meio de algo, de um processo que não se sabe onde vai terminar, mas que apresenta questionamentos cada vez mais firma sobre as bases que pautaram seu funcionamento por quatro décadas.

Houve, na sexta-feira (25/7/2014), uma nova demonstração neste sentido. Mais de uma centena de parlamentares italianos assinaram uma declaração em apoio à Argentina no conflito com os fundos abutre. Afirmaram que “chegou o momento de superar o caos normativo existente em nível internacional para a reestruturação de dívidas soberanas”. A iniciativa foi assinada por 105 legisladores de diversos partidos políticos. O texto proclama a necessidade de “regras e procedimentos de gestão acordados em nível internacional para a reestruturação das dívidas soberanas”. “Casos deste tipo revelam a ausência das regras e normas claras, que envolvem os mercados financeiros em escala internacional, e podem ter consequências graves para um país soberano e para a estabilidade de todo o sistema econômico internacional”, enfatizaram.

Nesse sentido, entenderam que “esta dramática eventualidade” –como se referem ao caso argentino– poderia ter “repercussões mais do que graves, tanto no plano interno argentino”, como sobre “o sistema econômico e financeiro internacional”.

Diante deste panorama, os legisladores disseram que “urge retomar nas instituições financeiras (FMI e Banco Mundial) o caminho para o estabelecimento de um conjunto de procedimentos de gestão acordados, em nível internacional, para a reestruturação das dívidas soberanas”.

Na mesma linha, o secretário adjunto da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), Antonio Prado, advertiu que a sentença do juiz Griesa “atenta contra o sistema financeiro internacional, porque constitui um precedente que pode obstaculizar outros processos de reestruturação da dívida soberana”. “O caso da Argentina é um leading case para a comunidade internacional, que evidencia um vazio jurídico e deve dar lugar para reformas que permitam proteger os bens comuns”, afirmou o funcionário, ao falar diante do Conselho Sul-americanos de Finanças, em sessão realizada no Palácio San Martín.

Tais manifestações de apoio ao país e questionamentos sobre a falta de regulamentação internacional dos mercados são um elemento que o governo deve continuar considerando nesta briga com os abutres, pois “estar isolados do mundo” já não é mais uma opção.

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Tradução: Daniella Cambaúva

Original: http://www.pagina12.com.ar/diario/economia/2-251600-2014-07-26.html

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