(Português) Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka

ORIGINAL LANGUAGES, 27 Jun 2016

David Arioch | Jornalismo Cultural - TRANSCEND Media Service

 “Agora eu posso olhar para vocês e me sentir em paz”, disse aos peixes no aquário.

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Franz Kafka teve de enfrentar o preconceito quando se tornou vegetariano (Foto: Reprodução)

Um dos escritores mais influentes do século 20, o tcheco Franz Kafka, famoso por clássicos intrapessoais como A Metamorfose, O Processo e Um Artista da Fome, é um exemplo de ser humano que, contrariando todas as expectativas, se tornou vegetariano ainda na juventude. Seu pai, Hermann Kafka, vinha de uma linhagem de açougueiros que comercializavam carnes kosher. E foi justamente por causa dessa herança cultural que em 1910 ele ficou encolerizado quando soube que o filho não se alimentaria mais de animais.

Um dia, depois de se tornar vegetariano estrito, Kafka passeava em Berlim acompanhado da namorada do seu melhor amigo – Max Brod. Ele observou alguns peixes em um aquário e disse: “Agora eu posso olhar para vocês e me sentir em paz.” Declarações como essa podem ser encontradas na biografia que Brod escreveu sobre o amigo e publicou em 1937, baseando-se em cartas e diários.

O escritor tcheco comparava os vegetarianos aos primeiros cristãos, destacando que eles também eram perseguidos e insultados na sala de jantar. Apesar dos infortúnios, ele anotou em seu diário em dezembro de 1912 que não poderia estar mais satisfeito com a sua digestão depois de um jantar vegetariano. Tudo indica que Kafka conheceu o vegetarianismo através do seu tio e médico Siegfried Löwy.

Inspirado no livro Mein System, do atleta vegetariano dinamarquês Jorge Peder Müller, que ministrou uma palestra em Praga em 1906, ele adotou outros hábitos saudáveis, como a prática de atividades físicas. Também aprendeu a mastigar corretamente, seguindo os ensinamentos do especialista em alimentação saudável Horace Fletcher, conhecido como “O Grande Mastigador”.

Quem também ajudou Kafka na transição foi o alemão Moriz Schnitzer, da União Vegetariana Internacional, que em 1911 recomendou que ele seguisse uma dieta vegetariana, tomasse ar fresco, dormisse com a janela aberta e trabalhasse com jardinagem nas horas vagas. Kafka seguiu todas as sugestões. Sempre que terminava o seu expediente como advogado, ele atuava como ajudante de jardineiro, e sem cobrar nada em troca.

Apesar de não existir nenhuma prova de que ele era um membro da União Vegetariana Internacional, o escritor aparece na edição de junho de 1911 da revista alemã Reformblatt como um doador de uma campanha antivivissecção. “Seis meses depois, o vegetarianismo, aliado aos exercícios físicos, não apenas curou o meu sistema digestivo como permitiu que eu não tivesse mais vergonha do meu corpo ao frequenter a piscina pública”, escreveu em seu diário.

Na comemoração de ano-novo de 1911, ele jantou schwarzwurzeln, um tipo de raiz comestível conhecida no Brasil como escorcioneira, com espinafre e 250 ml de suco de frutas. Era hábito comum de Kafka falar sobre a sua alimentação cotidiana em cartas enviadas a amigos e familiares. “Estou comendo repolho recheado, sopa de frutas e bebendo suco de oxicoco”, contou à sua irmã Elli em 1911. Sua empolgação aumentava a cada dia. Em 1912, ele revelou em seu diário que gostaria de fundar uma organização de cura pela natureza.

A maior resistência ao novo estilo de vida de Kafka veio do seu pai (Foto: Reprodução)

A maior resistência ao novo estilo de vida de Kafka veio do seu pai (Foto: Reprodução)

Quando entrava de férias ou precisava se internar para tratamento médico em algum sanatório, Kafka sempre escolhia lugares com opções para vegetarianos estritos. E por isso teve muitos conflitos com a família, principalmente com o pai. O novo estilo de vida incomodava tanto Hermann que por meses ele se negou a olhar para o filho durante o jantar.

Sobre o vegetarianismo, não há dúvidas de que a escolha do jovem Franz foi motivada pelo seu frágil estado de saúde. Mesmo assim, Kafka daria grandes demonstrações de que a sua ética também tinha peso sobre a sua decisão. A maior prova disso é que frequentemente ele escrevia sobre a natureza e o estado de consciência dos animais – cães, chacais, ratos, cavalos, bois e toupeiras, entre outros.

Um exemplo é o conto Ein Bericht für eine Akademie (Um Relatório para a Academia), de 1917, que conta a história de um macaco que aprende a se comportar como um ser humano para fugir do cativeiro. Nesse interim, o animal escreve para a academia sobre a sua transformação.

“Quando em Hamburgo fui entregue ao primeiro adestrador, reconheci logo as duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao teatro de variedades; essa é a saída. O jardim zoológico é apenas uma nova jaula, se você for para ele, estará perdido”, narra em Ein Bericht für eine Akademie.

Entre as mais surpreendentes experiências vividas por Kafka está uma registrada em outubro de 1918, quando ele contraiu a nefasta gripe espanhola, epidemia que dizimou aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo todo. Enquanto jovens saudáveis de sua idade morriam às centenas, Kafka conseguiu se recuperar rapidamente e atribuiu a vitória ao seu estilo de vida vegetariano.

“O açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate, e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim, tudo isso para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair, já fazia silêncio há muito tempo. Como bêbados em tomo de um barril de vinho, eles estavam deitados e mortos de cansaço ao redor dos restos do boi”, registrou no conto Ein altes Blatt (Uma Folha Antiga).

Outra característica intrigante de Kafka é que em muitas de suas histórias seus personagens comem carne crua e ensanguentada, talvez um recurso usado pelo autor para avultar a barbárie que envolve o consumo de carne.  Idealista, o escritor tcheco confidenciou em um de seus diários o desejo de se mudar para a então Palestina e abrir com sua namorada Dora um restaurante vegetariano em Tel Aviv. “Eu trabalharia como garçom. Gostaria de servir as pessoas”, informou.

Perto do fim da vida, e sofrendo em decorrência de uma tuberculose laríngea que o acompanhava desde 1917, ele foi pressionado a voltar a consumir carne. Desesperado e sentindo-se impotente, fez um acordo com a irmã Ottla, pedindo que ela se tornasse vegetariana para compensar sua iminente falha jamais concretizada. “Um de nós precisa continuar salvando os animais”, argumentou ele. A irmã manteve a promessa por toda a sua vida, até que foi executada em um campo de concentração nazista em 1943.

Referências:

Brod, Max. Franz Kafka, eine Biographie. Berlin S. Fischer Verlag (1937).

Kafka, Franz. Ein Landarzt – Ein Bericht für eine Akademie/Ein altes Blatt. Stroemfeld Verlag. (1920).

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David Arioch é jornalista, pesquisador e documentarista. Trabalha profissionalmente há dez anos com jornalismo cultural e literário.

Frank Kafka nasceu em Praga em 3 de julho de 1883 e faleceu em 3 de junho de 1924. Seu pai também possuía uma loja de presentes para homens e mulheres em Praga.

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