(Português) Será Possível Proibir as Armas Nucleares?

ORIGINAL LANGUAGES, 20 Mar 2017

Emb. Sergio Duarte – TRANSCEND Media Service

20 Mar 2017 – Pela primeira vez desde a fundação das Nações Unidas, a maioria da comunidade internacional parece estar pronta a dar um passo ousado e fundamental para a abolição do armamento nuclear. Em 23 de dezembro de 2016 a Assembleia Geral da ONU adotou a Resolução 71/258 que manda convocar uma Conferência para negociar um instrumento internacional juridicamente vinculante proibindo as armas nucleares, com vistas a sua completa abolição.

É conveniente recordar um esforço semelhante realizado em 1946, quando a primeira Sessão da Assembleia Geral da ONU determinou o estabelecimento de uma comissão encarregada de “tratar dos problemas decorrentes da descoberta da energia atômica e outros assuntos relevantes” e apresentar propostas para a “eliminação das armas nucleares e outras armas de destruição em massa”. Não houve seguimento dessa decisão. No entanto, devido à rivalidade e desconfiança entre as duas superpotências da época a decisão não teve efeitos práticos e o empenho subsequentes para adoção de medidas de desarmamento não prosperou. Nas décadas seguintes o foco dos esforços internacionais mudou de rumo e diversos instrumentos internacionais estabeleceram restrições com o objetivo de limitar o número de países que dispõem de armas nucleares.

Entre esses instrumentos, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que entrou em vigor em 1970, é o que conta com o maior número de participantes. O TNP dividiu o mundo em duas categorias estanques de países: os cinco que já possuíam armas nucleares até a data-limite de 1 de janeiro de 1967 (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia), de um lado, e aqueles que não as possuíam, de outro. Estes últimos aceitaram a obrigação de não adquirir armamento nuclear e a submeter-se a procedimentos internacionais de verificação. Pelo artigo VI do TNP, os cinco primeiros se comprometeram a “entabular negociações de boa fé e em breve prazo” que levem ao desarmamento nuclear. Até hoje, porém, nenhum dos nove possuidores demonstrou interesse efetivo em promovê-las. Posteriormente, outras quatro nações obtiveram seu próprio armamento atômico (Coreia do Norte, Índia, Israel e Paquistão)[i]

Desde a Conferência de Exame do TNP em 2010 a comunidade internacional tem-se mostrado cada vez mais preocupada com os riscos decorrentes da existência e aperfeiçoamento tecnológico das armas nucleares e com os efeitos de seu uso por acidente ou desígnio. Três conferências internacionais, em 2012 e 2014, analisaram os efeitos catastróficos de uma detonação nuclear: danos irreversíveis e generalizados às populações e ao meio ambiente e carência de recursos suficientes para fazer face à emergência humanitária decorrente. Em 2015, 127 Estados, inclusive o Brasil, firmaram um “Compromisso Humanitário” destinado a “proibir, estigmatizar e eliminar” as armas nucleares.

Com base especialmente em considerações de caráter humanitário e com firme apoio de organizações da sociedade civil, a comunidade internacional conseguiu negociar instrumentos multilaterais de proibição de duas categorias de armas de destruição em massa: as bacteriológicas (biológicas) em 1972 e as químicas, em 1996. Essas duas Convenções são consideradas parte do Direito Internacional consuetudinário.

A frustração da maior parte da comunidade internacional com a falta de progressos concretos em relação à categoria restante – as armas nucleares – foi em grande parte responsável pela decisão da atual Assembleia Geral, acima mencionada, de convocar em 2017 uma Conferência para negociar um instrumento juridicamente vinculante de proibição de armas nucleares, com vistas a sua eliminação. A resolução, co-patrocinada por 57 Estados, obteve 113 votos favoráveis, 35 contrários e 13 abstenções. O Brasil foi um dos principais proponentes originais da medida. Entre os possuidores de armas nucleares os Estados Unidos, França, Israel, Rússia e Reino Unido votaram contra a proposta, enquanto outros três (China, Índia e Paquistão) se abstiveram. A RPDC votou a favor da Resolução na I Comissão mas não compareceu ao voto na Assembleia.

Alguns países nucleares se encontram empenhados em uma vigorosa campanha contra os objetivos da Conferência e está instando seus parceiros em alianças militares que dependem do armamento nuclear a não participar das negociações, com o argumento de que a proibição proposta visa unicamente deslegitimar essas armas, com efeitos negativos sobre a segurança internacional, além de solapar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Esses países dotados de armamento atômico afirmam que a estabilidade estratégica e reduções negociadas de forças nucleares constituem o único caminho para alcançar o desarmamento nuclear.  Para atingir esse objetivo promovem uma abordagem “passo a passo” no campo multilateral, a qual, em sua opinião, produziu resultados tangíveis no passado e tem potencial para proporcionar progresso futuro.

Os defensores do tratado de proibição, por sua vez, acreditam que o novo instrumento reforçará as normas globais contra o uso e posse de armas nucleares, inclusive o TNP, e constituirá um poderoso instrumento jurídico e moral na promoção do progresso em direção à eliminação completa das armas nucleares. Consideram que os resultados obtidos até o momento têm disso importantes para evitar a proliferação, mas que desde o início da era nuclear não houve progresso multilateral substantivo em  medidas concretas de desarmamento. Assinalam que os possuidores de armas nucleares jamais aceitaram um compromisso claro, irreversível e juridicamente vinculante nesse sentido.

A Conferência negociadora se realizará em Nova York de 27 a 31 de março e de 15 de junho a 7 de julho de 2017, e estará aberta a todos os Estados, organizações internacionais e representantes da sociedade civil. Todos os Estados, inclusive os possuidores de armas atômicas e os que têm arranjos defensivos com estes últimos muito terão a ganhar em comparecer à Conferência e contribuir ativamente para seu resultado. Será importante evitar confrontações estéreis a fim de assegurar  o êxito da negociação.

Durante mais de vinte anos o mecanismo multilateral estabelecida para considerar e negociar  medidas de desarmamento se encontra em impasse e incapaz de concordar sequer em um programa de trabalho.  A maioria da comunidade internacional e da sociedade civil está decidida a levar adiante o processo multilateral. Estão convencidos de que um tratado que proíba a posse e uso de armas nucleares, ainda que não obtenha participação universal, ampliará e codificará a rejeição ao armamento atômico e levará a sua abolição final. O mundo sem dúvida acompanhará o processo negociador com extremo interesse em vista da grande expectativa de um resultado construtivo.

NOTA:

[i] Índia, Israel e Paquistão não aderiram ao TNP e portanto não estão obrigados por seus dispositivos. A RPDC anunciou sua retirada do Tratado em 1992.

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Sergio Duarte – Embaixador brasileiro, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento; ex-Presidente da Conferência das Partes do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares; ex-Presidente da Junta de Governadores da Agência Internacional de Energia Atômica.

 

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