(Português) Um Humanismo Radical

ORIGINAL LANGUAGES, 29 May 2023

Leonardo Boff – TRANSCEND Media Service

23 maio 2023 – Um dos problemas mais angustiantes hoje em dia na cultura mundial é a falta de humanidade. Não olhamos para os lados para ver o outro em suas dores, buscas e necessidades. Consideremos como são tratados os imigrantes do Oriente Médio e de África que buscam a Europa por causa de guerras e de grande fome. São rejeitados e fizeram do Mediterrâneo um verdadeiro cemitério.

O mesmo destino trágico sofrem os milhares de centro-americanos e mexicanos que procuram atravessar as fronteiras dos Estados Unidos. A maioria é rejeitada e alguns até mortos e crianças colocadas em gaiolas como se fossem pequenos animais famintos. Nem nos referiremos à África que vive há   séculos saqueada e ainda crucificada pelos europeus. Eles estão indo para a Europa porque antes os europeus estiveram lá e ocuparam e espoliaram suas terras. Os europeus foram acolhidos e agora não os querem acolher.

Símbolo Humanismo – Wikimedia Commons

Tais antifenômenos mostram como podemos ser cruéis e sem piedade para com nossos próximos que, na verdade, são nossos irmãos e irmãs. Talvez não podemos fazer muito. Mas às vezes basta um olhar compassivo, uma palavra de consolo, um sorriso verdadeiro, um toque na pele do outro para lhe comunicar que somos irmãos e irmãs, expressões da mesma humanidade.

Não nos tratamos humanamente. Da mesma forma agredimos nossa Mãe Terra a  ponto de o novo regime climático ultrapassando os 1,5 graus Centígrados, por volta de 2025-2027, pode pôr em grande risco a biodiversidade e, se aumentar mais o aquecimento global,  afetar o destino de nossa vida neste planeta.

É nesse contexto que resgatamos o melhor que o mundo já gestou: o Filho do Homem que se revelou como a presença humana de Deus entre os humanos: Jesus de Nazaré.

Mais que entregar-nos verdades, ele nos ensinou a viver os valores que davam corpo ao seu grande sonho,o Reino de Deus. Esse Reino não é como os reinos deste mundo,cercados de pompa e glória como recentemente assistimos com a coroação do rei da Inglaterra. É um Reino de amor incondicional, de solidariedade ilimitada, de compaixão, de serviço aos mais humilhados e ofendidos e de abertura total ao Deus-Abba (como o chamava, “meu paizinho querido”).

Ele sempre estava ao lado daqueles que menos vida tinham, os hansenianos, os cegos,os psicologicamente afetados (na linguagem da época, os possessos do demônio), os doentes e até mortos que ele ressuscitou. Ele mesmo disse:”vim trazer vida e vida em abundância”(Jo 10,10). Pelo fato de ter-se oposto ao tipo de religião da época, ritualista e farisaica e por ter revelado uma nova face de Deus, de infinita misericórdia e perdão, amando a todos,”até os ingratos e maus”(Lc 6,36) o crucificaram fora da cidade, símbolo da absoluta rejeição. Deixou dito algo extremamente consolador “se alguém vem a mim não o mandarei embora”(Jo 6,37),podia ser uma adúltera, um herege e gente de má fama: a todos acolhia e saiam consolados.

Ele mostrou uma radical humanidade, a ponto de os apóstolos e discípulos, considerando que “passou pela vida fazendo o bem” (Mc 7,37) e ter vencido a morte por sua ressurreição, não sabendo como defini-lo, acabaram dizendo: humano assim como Jesus só Deus mesmo. E começaram a chamá-lo de Filho de Deus e de Deus em nossa carne quente e mortal.

Esse humanismo radical lançou raízes profundas na humanidade. Esse humanismo universal e sem qualquer discriminação nos poderá devolver a nossa humanidade, coberta de cinzas pelo individualismo, pelo egoísmo, pela insensibilidade, pela falta de compaixão e pela ausência de cuidado de uns para com os outros, para com a nossa Mãe Terra e para com os seres que nela vivem.

Termino com dois testemunhos. Um de de Franz Kafka, o grande escrito checo, que disse: “ao ouvir falar de Jesus e de seu amor, fecho os olhos para não cair como num abismo”. E outro de Fiódor Dostoiévski que ao deixar a  Casa dos Mortos (título de seu livro) na prisão com trabalhos forçados na Sibéria escreveu comovedoramente:

”Às vezes Deus me envia instantes de paz; nestes instantes, amo e sinto que sou amado. Foi num destes momentos que compus para mim mesmo um credo, onde tudo é claro e sagrado. Este credo é muito simples. Ei-lo: creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais humano e de mais perfeito do que o Cristo; eu o digo a mim mesmo com um amor cioso que não existe e não pode existir. Mais que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha nele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade”.

Depois desta profissão de radical humanidade e de fé nada mais temos a dizer.

_________________________________________________

Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000;  A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016;  Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010;  A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, Paixão do Mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018; “Destino e Desatino da Globalização” em: Do iceberg à Arca de Noé, Mar de Ideias, Rio 2010 pp. 41-63.

Go to Original – leonardoboff.org


Tags:

Share this article:


DISCLAIMER: The statements, views and opinions expressed in pieces republished here are solely those of the authors and do not necessarily represent those of TMS. In accordance with title 17 U.S.C. section 107, this material is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. TMS has no affiliation whatsoever with the originator of this article nor is TMS endorsed or sponsored by the originator. “GO TO ORIGINAL” links are provided as a convenience to our readers and allow for verification of authenticity. However, as originating pages are often updated by their originating host sites, the versions posted may not match the versions our readers view when clicking the “GO TO ORIGINAL” links. This site contains copyrighted material the use of which has not always been specifically authorized by the copyright owner. We are making such material available in our efforts to advance understanding of environmental, political, human rights, economic, democracy, scientific, and social justice issues, etc. We believe this constitutes a ‘fair use’ of any such copyrighted material as provided for in section 107 of the US Copyright Law. In accordance with Title 17 U.S.C. Section 107, the material on this site is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. For more information go to: http://www.law.cornell.edu/uscode/17/107.shtml. If you wish to use copyrighted material from this site for purposes of your own that go beyond ‘fair use’, you must obtain permission from the copyright owner.

Comments are closed.