(PORTUGUESE) ESQUIZOFRENIA MORAL

COMMENTARY ARCHIVES, 7 Feb 2009

Nuno Franco

"O erro da ética até o momento tem sido a crença de que esta só se deve aplicar em relação aos humanos." Albert Schweitzer

A relação que os humanos estabeleceram com os animais é, no mínimo, estranha. Enquanto elegemos alguns como nossa companhia e os tratamos como se fossem membros da nossa própria família, enquanto nos maravilhamos com programas de TV e livros sobre os animais selvagens e os seus comportamentos nos seus habitats, e enquanto estudamos e recriamos os comportamentos de animais extintos há milhares de anos, reduzimos a existência de outros unicamente àquilo que deles poderemos obter.

Os animais que exploramos e dos quais retiramos centenas de produtos e inclusive a própria vida, são unicamente um produto, uma mercadoria: A vaca é o leite. O porco é o fiambre. A galinha é o ovo.

As únicas vezes que temos acesso a estes animais é quando já se encontram desmanchados, empacotados ou envoltos em papel celofane e expostos nas prateleiras dos supermercados, ou quando nos aparecem à frente dispostos num prato.

Quanto aos animais que gostamos de ver na TV ou em livros nos seus habitats naturais, colocamo-los atrás de grades, ou obrigamo-los a realizarem truques e rotinas para nosso divertimento. E como prova suprema da nossa superioridade, caçamo-los e matamo-los quase até á sua extinção.

Quando inclusive falamos em maus tratos e crueldade a animais fazemo-lo de uma forma redutora e selectiva, incluindo, geralmente, somente aqueles que escolhemos para nos estarem mais próximos. O estatuto de animais de companhia, que conferimos aos cães e aos gatos, parece dotá-los da exclusividade no que respeita à nossa preocupação moral e ao desrespeito dos seus direitos e quaisquer abusos dos quais sejam vítimas.

Por vezes esta preocupação é alargada a outra espécies, quando devido ao nosso comportamento quase causamos a sua extinção, ou quando surgem certas campanhas que conseguem atrair alguma atenção e mobilizar parte da opinião pública.

A chacina de focas que todos os anos decorre no Canadá, ou as criticas ao uso de peles e à sua indústria representam alguns exemplos desta conduta incoerente. Não deixa, no entanto, de ser curioso que a maioria das pessoas que se pronuncia sobre os maus tratos a cães e gatos, sobre a morte das focas ou sobre o uso de peles, se remeta ao silêncio quanto ao tratamento das galinhas e porcos, sobre o abate de vitelas ou leitões ou sobre o uso de cabedal.

O que torna umas práticas condenáveis e outras aceitáveis, e o que coloca alguns animais na nossa esfera de preocupação e consideração moral enquanto remetemos outros à indiferença é contraditória e difícil de compreender, e foi definida pelo escritor e filósofo norte-americano Gary Francione como “esquizofrenia moral”.

Apesar de, desde Darwin, se considerar que não existe nenhuma diferença biológica fundamental entre humanos e animais, existe a tendência de demarcar com exactidão tudo o que nos separa das restantes espécies.

As mulheres estão grávidas, as cadelas estão prenhas.Os humanos têm cara, os animais têm focinho.Os humanos têm sentimentos, os animais têm instinto.Quando pretendemos inclusive ofender ou qualificar negativamente alguém é frequente recorrermos a determinadas espécies com um carácter pejorativo:

Quem não prima pela higiene é porco, apesar deste animal em condições naturais ser extremamente limpo. Quem é pouco inteligente é burro, apesar de estes animais serem bastante inteligentes. Uma mulher promíscua é apelidada de vaca, apesar de as vacas acasalarem somente uma vez por ano.

A mesma postura é adoptada quando o objectivo é desumanizar: Hitler apelidava os judeus de ratos; os turcos otomanos denominavam os arménios de gado; durante a vigência do apartheid na África do Sul as pessoas de raça negra eram chamadas de macacos.

A própria palavra animal é por si só discriminatória, pois utilizamo-la para definir todas as outras espécies, e esquecemo-nos que nós próprios somos animais.

Um chimpanzé é denominado de animal, um camarão é denominado de animal. Já nós denominamo-nos como humanos, apesar de termos mais semelhanças com um chimpanzé, com o qual compartilhamos 96% do código genético, do que as semelhanças entre um chimpanzé com um camarão.

Esta demarcação extrínseca permite tratar os animais não humanos de uma forma onde qualquer sentido de ética lhes é negado, e enraízam a crença que, o ser humano ao ser “superior” e gozar da “razão”, poderá usá-los e explorá-los sem qualquer consideração sobre os seus interesses. Estas duas premissas são suficientes para legitimar qualquer comportamento e justificar o domínio.

Se tivermos em conta que não é indispensável, nem é uma questão de sobrevivência, uma alimentação com produtos derivados de animais para gozarmos de uma boa saúde (muito pelo contrário), que existem centenas de alternativas sintéticas ao couro e às peles, e que existem alternativas a espectáculos que utilizem animais como intervenientes, só para dar alguns exemplos, deveremos pensar porque é que o progresso moral da humanidade não acompanhou, por exemplo, o avanço tecnológico?

A tradição e o hábito não podem servir para justificar todos os nossos comportamentos, nem funcionar como entrave à evolução moral. Se assim fosse ainda hoje teríamos institucionalizadas práticas que actualmente consideramos retrógradas, apesar de infelizmente ainda serem uma realidade, como a escravatura, trabalho infantil, ou a proibição de voto às mulheres.

Nunca se falou tanto em abuso, exploração e direitos dos animais, mas também nunca na nossa história foram cometidas tantas atrocidades e em números tão elevados contra eles.

Se, por um momento, em vez de nos centrarmos nas diferenças que separam humanos de animais, veríamos que, no que é verdadeiramente essencial, somos iguais: todos procuramos o bem-estar; todos pretendemos evitar o sofrimento; e todos pretendemos a preservação da vida. Partirmos deste pressuposto de igualdade, ao estabelecermos a nossa relação com os animais, seria provavelmente o maior progresso moral que a humanidade poderia realizar.
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Nuno Franco é sócio da União para a Proteccão dos Animais e editor da Veggix Magazine

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