(Português) O Naufrágio de Ulisses

ORIGINAL LANGUAGES, 8 Feb 2016

Prof. Paulo Mendes Pinto – TRANSCEND Media Service

Paulo Mendes PintoIronicamente, que seja este drama que agora vivemos com os refugiados, a oportunidade para nos tornarmos mais humanos, mais europeus.

“Ai de mim, a que terra chego de novo?
Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?
Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?”
Homero, Odisseia, canto VI (tradução e adaptação de Frederico Lourenço)

A denominação de “clássico” é vulgarmente usada sem que percebamos exatamente o que a palavra significa. Diz-se clássico quando nos referimos a alguma coisa que é atemporal, como que eternamente válida, modelo que define normas; o clássico é desejado, imitado, recriado e reinterpretado.

Era neste sentido que há uns anos Italo Calvino nos interpelava: Porque ler os Clássicos? E a pergunta diz respeito a mais que uma cultura antiga, a uma literatura ou Belles Letres exteriores a nós. A validade e a necessidade de regressar e de ler os clássicos reside na radiografia de nós mesmos que fazemos a cada linha e a cada pensamento.

Talvez poucas vezes, como hoje, seja tão necessário regressar às raízes e às origens para perceber essências e delimitar as margens até onde nos queremos mover e sair do lugar de conforto.

Também poucas vezes, como hoje, me foi dado compreender o alcance de um dos mais festejados clássicos da nossa cultura, especialmente um dos seus episódios mais significativos: a chegada de Ulisses à ilha dos Feaces, sendo aí acolhido. As similitudes com os dias de hoje são gritantes.

Diz-nos a Odisseia de Homero que depois de largos anos num cativeiro na gruta de Circe, Ulisses enceta uma longa e atribulada fuga que o conduziria a casa, lançando-se nas águas do Mediterrâneo. Náufrago, como tanta gente que ontem e hoje enceta fugas nesse mar interior, Ulisses vai dar a uma praia, inconsciente, como morto. Já é o único sobrevivente do seu frágil bote, de toda uma turba que se lançou ao mar depois da terrível guerra nas praias de Tróia.

Sem o saber, qual moribundo, o príncipe de Ítaca dera à costa do reino dos Feaces. Será a filha do rei a recolher o náufrago e a indicar a Ulisses como agir para ser bem acolhido. Nausícaa, de seu nome, oferece ajuda sem nada pedir em troca.

E é aqui que se dá “Europa”. Ulisses é acolhido, é alimentado, é lavado e vestido, e só depois se pergunta quem é e de onde vem. É isto a hospitalidade e o humanismo que há quase 3.000 anos marcava a narrativa de Homero na frase que coloco como epígrafe, resultado do medo do herói, e que se materializava na salvação que ele, afinal, iria encontrar pelas mãos e pelos atos de quem nem lhe perguntara o nome antes de o alimentar. É este o nosso ADN cultural.

Com o passar dos séculos, dos milénios, sempre o ato de dar alimento e guarida marcou a nossa forma de estar perante a definição de humano. Essa visão fraternal tem sido transversal a religiões e a geografias neste vasto Mediterrâneo.

Muitas mortandades temos feito, e com eficácia cada vez mais comprovada. Mas muita generosidade temos também conseguido fazer em ambientes brutalmente hostis. É verdade que nos últimos anos, fruto de um abandono absurdo dos mais básicos valores europeus, especialmente dos de fraternidade e de solidariedade, muito de pouca atenção e cuidado se tem dado ao nosso semelhante, ao nosso vizinho, ao mais desfavorecido entre os nossos concidadãos.

Mas que não seja esse o argumento para recusar abrigo e alimento a quem nos demanda em busca do que não encontra, o mínimo e básico de sobrevivência e de dignidade. Que se reencontre a identidade da partilha, da mesa, da festa, recuperando também dentro da nossa sociedade o apoio aos mais desfavorecidos.

Tal como com Ulisses, somos uma sociedade naufragada, com pouco de utopia em nós, recusando abrigo aos sem-abrigo que temos junto das nossas paredes. Mas ao contrário de Ulisses, somos também nós a praia onde damos à costa, sejamos Sírios desesperados a fugir da guerra que nós, Europa, possibilitámos e fomentámos, ou sejamos europeus de direito “burocrático” mas pouco cívico.

Ironicamente, que seja este drama que agora vivemos com os refugiados, a oportunidade que não aproveitámos com a crise financeira para nos tornarmos mais humanos, mais europeus.

__________________________________

Paulo Mendes Pinto é o Director da área de Ciência das Religiões e do Inst. de Estudos Islâmicos Al-Muhaibid da Universidade Lusófona, Lisboa.

Go to Original – publico.pt

Share this article:


DISCLAIMER: The statements, views and opinions expressed in pieces republished here are solely those of the authors and do not necessarily represent those of TMS. In accordance with title 17 U.S.C. section 107, this material is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. TMS has no affiliation whatsoever with the originator of this article nor is TMS endorsed or sponsored by the originator. “GO TO ORIGINAL” links are provided as a convenience to our readers and allow for verification of authenticity. However, as originating pages are often updated by their originating host sites, the versions posted may not match the versions our readers view when clicking the “GO TO ORIGINAL” links. This site contains copyrighted material the use of which has not always been specifically authorized by the copyright owner. We are making such material available in our efforts to advance understanding of environmental, political, human rights, economic, democracy, scientific, and social justice issues, etc. We believe this constitutes a ‘fair use’ of any such copyrighted material as provided for in section 107 of the US Copyright Law. In accordance with Title 17 U.S.C. Section 107, the material on this site is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. For more information go to: http://www.law.cornell.edu/uscode/17/107.shtml. If you wish to use copyrighted material from this site for purposes of your own that go beyond ‘fair use’, you must obtain permission from the copyright owner.

Comments are closed.