(Português) António: do martírio à festa, ou a alquimia da apologia da vida

ORIGINAL LANGUAGES, 20 Jun 2016

Paulo Mendes Pinto – Público

Paulo Mendes Pinto14 junho 2016 – Era Portugal um jovem reino, e vivia-se por toda a Europa um forte espírito de martírio, quando viveu em Lisboa um jovem que viria a ser mais tarde conhecido como António, frei, santo desde 1232. Se o nome que escolheu evoca a figura matriz do eremitismo, a sua prática de vida lança-nos para o cosmopolitismo, para a cidade, para o contacto com o outro e não para a fuga mundi.

Mas António era peculiar, numa época também com as suas peculiaridades, algumas delas muito difíceis de entender com o apetrechamento mental que temos hoje, especialmente com os recorrentes atentados terroristas que marcam o nosso tempo, e que nos são muitas vezes apresentados com uma roupagem supostamente religiosa.

Depois dos primeiros séculos do Cristianismo, nos séculos XII / XIII, a cultura cristã ocidental passava novamente por uma fase de glorificação do martírio como forma de louvor a Deus e de afirmação poderosa da submissão do devoto à missionação – o erro do “outro” era ferramenta para a expiação própria, qual luta demoníaca e perdida que, assim, ganhava uma força como que apocalíptica.

Assim aconteceu com os célebres Mártires de Marrocos, um grupo de frades italianos da região da Toscânia, profundamente ligados a Portugal no seu processo de martírio. Na II Assembleia Geral da Ordem Franciscana, em Assis, foram eleitos como missionários para essas terras dominadas por muçulmanos, e iniciaram essa missão em Portugal, partindo depois para Sevilha, ainda em mãos muçulmanas na época.

SANTo antonio

Tal como sucede em relação aos mártires dos primeiros séculos do Cristianismo, onde a natureza por vezes verdadeiramente exótica dos milagres em torno de uma morte é sempre um desafio ao “infiel”, ao pagão, também no caso destes mártires cristãos do século XIII, a procura do martírio parece ser mesmo o desígnio que os frades procuravam, apesar das inúmeras possibilidades de vida que lhes foram dadas. O que se procurava era o choque religioso que, obviamente, nunca terminaria bem – aliás, esse final marcado com a morte era a prova do quão demoníaca era a fé dos contendentes, alimento para novas investidas, agora ainda mais cimentadas no desejo de extirpar a face da terra dessa doença.

Contudo, todos os dados e factos que nos chegaram pelas tradições escritas, por mais sólidos que ao longo dos séculos tenham parecido, movimentando crentes, fé e piedade, muito pouco parece ser factológico. É um campo de mito e de lenda onde se espraiam os desejos e as preocupações religiosas de uma época de extremos onde a busca da morte era muitas vezes a única via para um quadro quotidiano positivo, um sentido superior para a vida.

Parece que os missionários se dirigiram a Coimbra, grande centro teológico e cultural da época, onde D. Urraca lhes terá dado guarida. Num misto de fé e de misticismo, a rainha suplica aos frades que lhe revelem o momento da sua morte. Relutantes, acabam por predizer que a vida de D. Urraca apenas chegaria ao seu termo quando de Marrocos os cristãos trouxessem a Coimbra os seus corpos martirizados – este era, claramente, o objectivo: atingir o estatuto de mártir.

Ora, nesta estadia em Coimbra, o jovem referido no primeiro parágrafo, Fernando de Bulhões, terá ouvido as prédicas destes frades no mosteiro de Santa Cruz, o que em muito lhe influenciou a vida. Mais o terá marcado o regresso, já como “relíquias”, dos seus restos mortais, depois de conseguido o intento: terem-se tornado mártires.

No que respeita ao curto resto da vida destes frades, ela dava uma imensa narrativa em torno da intolerância e das formas de acirrar o conflito, de como é possível fazer tudo para se ser morto. Numa época de cruzadas, de recriação e consolidação das ideias de infiel e de herege, o cristianismo ocidental lançava-se numa verdadeira, e aqui literal, caça às bruxas, que nos mostra todos os matizes da perseguição e luta religiosa hostil (Cruzadas contra o Islão, guerra contra os Cátaros, Inquisição e reforço das medidas contra os judeus, crescente demonização da mulher com a sua assimilação a práticas demoníacas, etc).

Foi este, irónica e inesperadamente, o tempo e o exemplo que terá levado o jovem Fernando a querer ir também para Marrocos evangelizar ou, ao espírito da época, ser mártir. É-nos difícil imaginar o frei António, seja ele de Pádua ou de Lisboa, a ser um fundamentalista radical que procura o confronto religioso em terras dominadas por outra religião para ser morto e, com isso, obter a salvação. Mas sim, era esse o quadro.

Mas a ironia não se fica pela tão grande diferença que a cultura popular nos criou entre o que imaginamos terem sido os referidos Mártires de Marrocos e o bonacheirão e brincalhão Santo António. Se a festa litúrgica de uns tem lugar a 16 de Janeiro, data da morte colectiva, numa época de frio, de morte da natureza, o santo paduano-alfacinha assentou arraiais festivos a 13 de Junho, dia em que faleceu, uma data muito próxima do solstício de Verão, o máximo da afirmação da vida.

A história da vida deste santo católico é marcada por alguns revezes, sendo o primeiro o dito desejo de missão em terras islâmicas. Uma tempestade afasta-o de África e transforma-se o dito empenhado missionário em grande orador, agora, próximo de Francisco de Assis, e com incumbências que lhe granjearão fama até aos dias de hoje como Doutor da Igreja. Evangeliza, sim, mas não se torna em mártir que valoriza a morte como salvação.

Mas o mais interessante da vida de António reside na sua mitologia, na forma como os meios populares pegaram nesta figura e a catapultaram para uma das marcas mais fortes da presença portuguesa e mesmo cristã no mundo sendo, talvez, um dos santos católicos mais venerados em todos os continentes, não como radical opressor, mas como imagem de humanidade.

A força de Santo António junto das populações não reside, nem nos conteúdos teológicos que o levaram a esse grupo restrito dos Doutores da Igreja, nem no desejo de martírio que o terá levado a buscar terras de África. O António dos arraias, dos tronos em que se apresenta com o alegre menino ao colo, é uma figura de uma simples humanidade que nos desarma.

Profundamente venerado pela ordem religiosa que adotou, canonizado quase em vida, tal como acontecera a Francisco de Assis, António centra em si uma devoção popular de uma intensidade imensa, como que criando duas figuras sacras dentro de um mesmo nome e memória: o Doutor e o Pregador, que muitas vezes recorre à ascese, versus o frade bonacheirão e santo humano que é amparo de aflitos e motor de festejos populares onde a festa e o folguedo são parte inquestionável, muitas vezes mesmo com um tom brejeiro alimentado pelas lendas das matreirices do jovem frade.

E é nesta situação que se dá a alquimia que nos transporta para a actual noção de martírio, dando-nos os dados de um verdadeiro laboratório de humanidade: como foi possível transformar em figura tutelar de festas e alegria, uma personagem religiosa que em muito nos poderia remeter para a intolerância?

De facto, Fernando de Bulhões, ao aderir a uma forma de vida consagrada, permitiu-nos aceder a um Santo António culto, orador afamado, mas também brincalhão. O martírio pela entrega da vida é substituído no horizonte popular pela afirmação dessa mesma vida naquilo que ela tem de mais simples: a alegria momentânea. À intolerância religiosa sobrepõe-se a religião que se liberta da teologia e se torna em mundivivência da afirmação do quotidiano.

Naturalmente, a imagem de António, na sua dimensão de santo aclamado pela população, o santo subito, tem, ano após ano, uma bengala que o revivifica: a data da sua morte cola os seus festejos aos das figuras ligadas à ciclicidade da vida, dos ritmos sazonais onde em Junho impera a vontade de tudo ver frutificar. É assim o mundo que nos abre o solstício, com casamentos, com festas e com a afirmação da abundância, desde tempos imemoriais onde os monoteísmos ainda não tinham sido pensados na máquina de alquimia que é a evolução das ideias.

António, Santo popular de um sem-número de práticas nada católicas, é a imagem da vida, da festa, da abundância, do convívio, da comunidade. É esta a alquimia que temos de recordar neste Junho em que à Europa faz falta um grande solstício que afirme os valores que nestes dias Alfama, bairro com nome herdado da presença islâmica, pratica até mais não poder.

Do martírio à festa, temos um caminho de bom-senso que é o maturar de milhares de anos de lutas e de guerras em que a populaça, sem aceso a grandes teorizações, sem teologias, nem patrísticas, percebeu o fundamental: façamo-nos irmãos no encontro, na partilha, antes que nos digam que temos de matar numa luta fratricida que não percebemos, que não é nossa, como recorrentemente aconteceu e acontece, numa apropriação de valores e de identidades onde se é instrumentalizado.

De forma simples, sem teologia, com Santo António se percebe que a alegria mais efémera da vida vale mais que qualquer morte, sempre definitiva, mesmo que supostamente gloriosa.

Para saber mais:

António, um laboratório de identidade

Em tempos de martírios, urge revisitar os «Mártires de Marrocos»

_________________________________________

Prof. Paulo Mendes Pinto é diretor da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona em Lisboa, Portugal.

Go to Original – publico.pt

Share this article:


DISCLAIMER: The statements, views and opinions expressed in pieces republished here are solely those of the authors and do not necessarily represent those of TMS. In accordance with title 17 U.S.C. section 107, this material is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. TMS has no affiliation whatsoever with the originator of this article nor is TMS endorsed or sponsored by the originator. “GO TO ORIGINAL” links are provided as a convenience to our readers and allow for verification of authenticity. However, as originating pages are often updated by their originating host sites, the versions posted may not match the versions our readers view when clicking the “GO TO ORIGINAL” links. This site contains copyrighted material the use of which has not always been specifically authorized by the copyright owner. We are making such material available in our efforts to advance understanding of environmental, political, human rights, economic, democracy, scientific, and social justice issues, etc. We believe this constitutes a ‘fair use’ of any such copyrighted material as provided for in section 107 of the US Copyright Law. In accordance with Title 17 U.S.C. Section 107, the material on this site is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving the included information for research and educational purposes. For more information go to: http://www.law.cornell.edu/uscode/17/107.shtml. If you wish to use copyrighted material from this site for purposes of your own that go beyond ‘fair use’, you must obtain permission from the copyright owner.

Comments are closed.